Mestra Nega Pataxó, assassinada em seu território pelo grupo “Invasão Zero” em 21 de janeiro de 2024

Ataque aos Pataxó Hã-Hã-Hãe na Bahia

Noa Cykman
4 min read6 days ago

22 de janeiro, 2024

Estou no assentamento Terra Vista, do MST, na região cacaueira da Bahia, participando de uma formação de construção e defesa de territórios com a Teia dos Povos. No último domingo, na fila do jantar me chegou a notícia: uma pajé assassinada, um cacique hospitalizado, uma indígena torturada e outros feridos, incluindo grávidas e crianças, por um conluio dos fazendeiros com a polícia militar. Pajé Maria de Fátima, a Nega, e Cacique Nailton, do povo Pataxó Hã-hã-hãe na Aldeia Ourinho — aldeia vizinha ao assentamento de onde escrevo, perto demais. Perto demais para manter a ilusão de que o que ocorre com os outros não nos ameaça. Ao dizer nós, neste caso, me refiro a eles e elas — pessoas e povos indígenas na mira de um Estado genocida.

Foi chamada uma assembleia para às 19h e nos sentamos em roda no gramado em frente à escola Florestan Fernandes, cujos espaços acolhem o evento da Teia dos Povos. Em torno de duzentas e cinquenta pessoas nos sentamos num círculo epitomado por uma bancada de anciãos e anciãs composta por Mestre Joelson, Mestra Japira, Seu Loro e Seu Valmir. Erahsto Felício levantou para passar o informe e narrou o ataque à aldeia, tentativa de chacina naquele mesmo dia, ao meio-dia, executado por fazendeiros e facilitado pela polícia militar, cujas viaturas abriram alas aos executores. A história se repete sem descanso desde a chegada das caravelas, e no entanto o horror se mantém inédito. Erahsto concluiu o relato e sinalizou que os mais velhos nos indicariam a direção, convidando Joelson a tomar a palavra.

Na acurada visão bifocal de Joelson, liderança de Terra Vista, o evento é sintomático do mais amplo contexto político nacional. É preciso entender o momento histórico em que estamos, ele diz: a direita está organizada, e reúne sob uma agenda comum os políticos conservadores, fazendeiros latifundiários, a polícia militar, o exército e as igrejas neopentecostais — que recebem militares para lhes conceder o perdão de Deus por qualquer tragédia que tenham cometido. A esquerda, por outro lado, desarticulada e negligente, crê em representantes aliados ao agronegócio. A poucos quilômetros daqui encontra-se um clube de tiro ao alvo cujos alvos são cabeças de indígenas, negros e sem terra, conta Joelson. E a cara exposta dos fazendeiros sorridentes da chacina comprova seu conforto, seu bem-estar dentro de um status-quo a seu serviço. Dessa vez o ataque teve escala menor; certamente planejam maiores. “Já não nos querem nem pra escravo”. Tal o grau de exclusão e ódio para o qual há que se preparar. A guerra é de defesa, diz Joelson, e quem não se prepara para se defender não consegue seguir caminho. E pede que os encantados nos guiem.

Mestra Japira, da aldeia Novos Guerreiros, toma a palavra, chamando ao centro da roda todos os parentes indígenas Pataxó e de outras etnias. Dentro de mim percorre uma corrente de comoção, solidariedade, dor e admiração por essas pessoas e povos de uma força indizível para se levantar de novo e de novo em um país que os escracha. Mestra Japira dirige a palavra aos seus: luta pelo seu povo, não deixa seu povo morrer. A roda se metamorfoseia em ritual: vêm aliados das plantas, tabaco, defumações, encantados, cantos, tambores, maracás; aos poucos se estabelece um campo de força que se sente na pele, nas mãos, no corpo, naquilo que percorre ligando um ser a outro e na somatória dos presentes. Em lugar de se render ao lugar em que os fazendeiros os querem — fracos, abatidos, dispersos — a aliança dos povos afirma sua existência e lucidez, sua inabalável determinação de viver. Sua força de aliança com as forças da vida, de fé nas fontes da fé, lhes atribui uma coragem chocante em meio ao profundo luto.

A expropriação das terras é uma tática básica de dominação que marca a continuidade desde a chegada dos invasores europeus até os dias de hoje. Nos trilhos da colonização e na ausência de qualquer reforma agrária substancial, o Brasil está entre os países com pior distribuição de terra no mundo. Aproximadamente metade da terra agricultável do país pertence a menos de 1% da população. Para as comunidades indígenas, que habitavam 100% do território, restam 13.9% — sob constante ataque.

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Noa Cykman
Noa Cykman

Written by Noa Cykman

Humana, socióloga, amiga das palavras e das utopias

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