Crise e quarentena: tempo para desativar a bomba-relógio
Pergunto-me como pode ser que esta pausa, em que a Terra inteira respira, acalma e se regenera, seja, para a sociedade humana, um tombo brutal de insegurança e pobreza. Isso, creio, aponta que nosso sistema socioeconômico 1) é uma patologia, um vírus no ecossistema, ou um câncer, que não pode parar de crescer — com seu desenvolvimento, destrói o que encontra; quando se detém, morre; e 2) é artificial, perfeitamente antinatural, portanto passível de transformação. Por que nos provoca assombro e dano a suspensão de uma economia doente, destrutiva, competitiva e desigual? Poderíamos sentir-nos libertos, aptos a sair da gaiola.
A situação do planeta é crítica (e o contexto social, não menos). Urgências prestes a se incendiarem, irreversivelmente. De repente, uma força fez com que tudo parasse, quase como nos oferecendo uma última chance, um ultimato, oportunidade de desviar o rumo antes da catástrofe. "Olhem bem, olhem em que mundo estão vivendo, vejam a direção em que estão indo; parem seu business-as-usual por um instante para enxergar: aqui está a borda, olhem a profundidade do precipício", o pé já escorregando.
Cegos, surdos, desejamos retornar à normalidade. À rotina de uma vida contrária à vida. Despencar.
Enquanto a preocupação geral se volta à recessão por vir, penso que o que devemos fazer, de fato e com urgência, é debandar do sistema.
A ideia de crise econômica é enganosa, e nos mantém servis através do medo. No mundo, sem austeridade, a terra continua; abunda, com ou sem crise econômica, igual qualidade e quantidade de alimentos, de água, de ar. A crise é um modo de governo, como diz o Comitê Invisível. “Para os neoliberais o discurso da crise é um duplo discurso — eles preferem falar, entre si, de ‘dupla verdade’. Por um lado, a crise é o momento vivificante da ‘destruição criadora’, criadora de oportunidades, de inovação, de empreendedores, em que só os melhores, os mais motivados, os mais competitivos sobreviverão. (…) Por outro lado, o discurso da crise intervém como método político de gestão das populações”. Quer dizer, o discurso da crise fictícia evita a crise efetiva; a crise econômica, obra de manobra da elite, apazigua e esconde a crise verdadeira, germe da revolução. Eles cultivam nossa falta de autoestima.
Não há escassez: é a organização social deliberadamente injusta, onde uma distribuição propositadamente desigual faz com que a maioria sofra de condições escassas, enquanto o topo da pirâmide fica intocável. Na dita crise, a maioria é penalizada com escassez mais severa, para que, com isso, a “economia” retome seu “equilíbrio”. Ficção; há, hoje, na Terra, suficiente produção de alimentos para toda a população mundial (não fosse o desperdício de um terço deles, e a agravante do escoamento que leva grãos à criação de gado). O mesmo para água, moradia, vestimenta, e arte: há em abundância. O que falta é a reestruturação total da sociedade, reorganização do trabalho e da distribuição, redirecionamento de fluxos. A crise econômica é um mito operante.
Não: não podemos desejar a ordem de volta. Seria, na encruzilhada, optar pelo suicídio. Retomar o envio de bananas embaladas em plástico dentro de aviões, os poluentes cruzeiros de turistas milionários, o consumo insaciável nos shopping centers, a migração forçada de animais selvagens: não. Não podemos reativar os ciclos convencionais de exploração e de destruição — muito menos desejá-lo, vítimas do discurso oficial — como a solução para a escassez cujo fantasma aumenta a cada dia a sombra que projeta sobre nós. A crise econômica mascara e desvia o olhar da crise realmente importante: a catástrofe ecológica já em andamento e a progressiva criação de um mundo hostil à vida, em que humanos e muitas outras espécies viverão com dificuldade e tenderão a definhar.
Bruno Latour, filósofo, atenta: “Com efeito, a crise sanitária está embutida no que não é uma crise — sempre temporária — mas uma mudança ecológica durável e irreversível. Se temos boa chance de ‘sair’ da primeira, não temos nenhuma de ‘sair’ da segunda. (…) Seria uma pena não nos servirmos da crise sanitária para descobrir outros meios de entrar na mudança ecológica que não às cegas”.
Não podemos desejar a ordem de volta, quando é justo a ocasião de abandoná-la. Devemos, no mínimo, examiná-la, observá-la com lucidez, observar e examinar a nós mesmas/os, e agir para provocar todas as interrupções e transformações possíveis.
Quais serão nossas incumbências históricas? Algumas delas:
Na vida imediata: 1) construir e fortalecer redes de produção de alimentos agroecológicos locais (deixando de sustentar a produção massiva e industrial e o transporte via combustíveis fósseis, apoiando a economia da comunidade em vez de corporações multinacionais, reduzindo o risco de disseminação de doenças, descobrindo os sabores locais e como se integram naturalmente às nossas necessidades); 2) reduzir o consumo de carne proveniente de fazendas industriais (atenuando os danos sociais e ecológicos causados por essa indústria; evitando, novamente, o surgimento de doenças, e diminuindo as doses de tortura e crueldade que a humanidade brinda ao mundo); 3) repensar e diminuir o consumo de modo geral, evitando o excesso de embalagens, conhecendo e comprando da economia local e artesanal, utilizando eletrônicos e eletrodomésticos durante toda sua vida útil, adquirindo roupas usadas em vez de novas etc. A redução do consumo implica a redução, a um tempo, da demanda de produção e da geração de lixo; 4) tornar-se mais ecológico em todos os possíveis: alimentar-se do que vem da natureza (não de máquinas), compostar resíduos orgânicos (basta cobri-los com folhas secas ou serragem), substituir produtos industriais por naturais (em vez de desodorante, leite de magnésia; em vez de desinfetante, limão etc.); não comprar produtos testados em animais (a grande maioria dos shampoos e condicionadores, por exemplo, são); atentar às medicinas disponíveis no jardim; dispor-se a se informar e a se engajar nessa transição, que implica romper a inércia e mudar hábitos. Terra e corpo são extensões recíprocas: cuidar de si é cuidar do mundo e cuidar do mundo é cuidar de si. De modo geral: reencontrar a lentidão, o cuidado, a vizinhança, o presente enraizado; regenerar os laços, zelar pelas relações.
No âmbito do governo, cumpre adotar políticas de proteção social, de redistribuição da riqueza através de limites máximos de rendimento, renda básica, tributação justa, e uma reforma agrária; garantir serviços públicos eficientes de saúde, habitação, educação, justiça; estimular e subsidiar a agricultura orgânica e a economia local; limitar a indústria; limitar a publicidade; sujeitar a economia financeira à economia real; direcionar-se ao decrescimento e à implementação de um “Green New Deal”.
Essas alternativas estruturais, para se enraizarem e sobreviverem, necessitam de valores e práticas também enraizados; a forma como nos relacionamos entre humanos e entre todos os seres é o fundamento e o espelho das estruturas maiores. A dimensão pessoal é, portanto, essencial para apoiar, através da mudança cultural, estas mudanças estruturais, e histórias de sucesso das comunidades locais são cruciais para a transição.
Mudar antes de cair no abismo. Ou seja, hoje.
Não voltar ao (a)normal.
PS:
Bruno Latour propõe um exercício composto de seis perguntas para fazer a si mesma/o. “Trata-se de fazer uma lista atividades de que nos sentimos privadas/os pela crise atual, fazendo sentir como se tivéssemos sido feridos em nossas condições essenciais para a subsistência. Para cada actividade, pode indicar se gostaria de retomá-las identicamente (como antes), de modo melhorado, ou não retomar de todo.”
Para detalhar as ideias, as perguntas são:
Pergunta 1: Quais são as actividades agora suspensas que você gostaria que não recomeçassem?
Pergunta 2: Descreva a) a razão pela qual considera esta atividade prejudicial/superada/perigosa/incoerente; b) como é que seu desaparecimento/adormecimento/substituição permitiria outras atividades que te favoreçam de forma mais fácil/mais coerente? (Criar um parágrafo separado para cada uma das respostas indicadas na pergunta 1).
Pergunta 3: Que medidas você recomenda para garantir que xs trabalhadorxs/empregadxs/agentes/contratantes, que não poderão continuar nas atividades que você eliminou, vejam facilitada a transição para outras atividades?
Pergunta 4: Quais das atividades agora suspensas você gostaria que se desenvolvessem/retomassem, ou quais devem ser inventadas em substituição?
Pergunta 5: Descreva a) a razão pela qual esta atividade lhe parece positiva; b) como ela torna mais fácil/harmônico/coerente o desenvolvimento de outras atividades desejáveis; e c) ajude a combater as actividades que você julga desfavoráveis? (Fazer um parágrafo separado para cada uma das respostas indicadas na pergunta 4).
Pergunta 6: Que medidas recomenda para ajudar xs trabalhadorxs/empregadxs/agentes/empresárixs a adquirirem as capacidades/meios/receitas/instrumentos para retomar/desenvolver/criar esta actividade?