Entremeando los Andes
La vieja quisiera explicarle que en esa piedra viven las divinidades y que si no fuera por la huaca, ella no sabría cómo se llama, ni quién es, ni de dónde viene y andaría por el mundo desnuda y perdida — Eduardo Galeano (Esa piedra soy yo)
Andes por onde andei presente passado por apus–morros ancestrais, avôs cactus, lua mãe, dentro de segredos de dentro da terra e de humanos, em mistérios rituais, mil arquiteturas de sonho, guerras inauditas e o cultivo de laço cósmico de paz com lagos, rios, sementes, algodão, céu e sol, chuva e chão; resistindo ao vento dos tempos e dos espasmos coloniais, tentações comerciais, ainda sempre Andes por caminhos de sangue subterrâneo, terra de carne quente, raíz de memória com voo de condor, geografia humana e sociedade de natureza feito espasmo histórico futuro passado de ouro de vida inteligente que em conjunto a tudo irriga, vida que de si multiplica por aroma de muña–menta, textura de porotos–brotos, som de cumbia, sentimento agridoce, pura mistura de memória presente.
No início de 2020 — antes de sequer haver vislumbrado o tipo de ano que nascia — estive viajando por Peru, Bolívia e norte da Argentina (janeiro sobretudo em Pisaq, no Vale Sagrado dos Incas, na região de Cuzco; fevereiro na Bolívia, cruzando-a de norte a sul em zigue-zagues; terminando a viagem na região de Salta, Argentina, em março, de modo estranho e brusco com o fechar das fronteiras no início do império Covid-19). Peru e Bolívia, coração da América do Sul, me pedem narrá-los, tal como me narraram, a conectar pontos que às vezes correm muito caminho e água antes de ver que atrás antes se conectaram; eu mesma sigo costurando o que vi e guardo, como sei que os tempos fazem. Como este relato nasceu sendo primeiro poesia, mais poética me veio à flor da pele a Bolívia antes que Peru elaborado com mais ordem, assim que o que segue é um combinado não-cronológico, nem estilisticamente linear de palavras-memórias — assim sendo bastante parelhos, nesse sentido, aos lugares que o inspiram.
mil Bolívias descamadas
Misteriosa, ácida e doce, escura e luminosa, quinas e ângulos imprevistos, mamitas inesperadas, gritaria e calma ancestral, montanhas celestes, sementes no fundo de quínoa y maíz, alimento da terra, gente que vive da terra e da troca, no limbo marginal da sucção capitalista, resistindo na costura de vestes de algodão e sombreros, tudo muito colorido, às vezes obtuso, confuso tudo de gente de origens, junto de tempos, de línguas, de sonhos misturados, esquecidos e vivos, coca, minas e dinamite,
assim o senti, grosso modo dito, os infinitos fios tão finos a costurar tal denso tecido que de estar e viver inspira e esgota, nação em tudo inaudita, o espírito avança e o corpo a tentar entender, o estômago não tem refúgio, os ouvidos não dão conta, cinco ou seis sentidos não bastam, são os atravessamentos multiplicados, e dizem que há sentidos também na sensibilidade dos pés e das mãos, entre outros e por aí, tanto há. sem poder absorver senão por loteria ou seleção de parte de mim decidida sem que eu fosse informada, um certo desconforto que me acompanhava de pouco poder saber ao certo sobre a verdade ou a intenção do que escutava, narrativas cruzadas, espírito bruto das forças de luta de conquista e resistência que se trava, e eu no meio, meio turista, toda branca.
bolívia melancolia poética, sem água na terra, sem papel no banheiro, mamitas bravas vendendo mercadoria desde as madrugadas às noites, trabalhando e dormindo enquanto trabalham, enquanto descascam frutas ou guardam a banca. os filhos, as filhas as colheitas e o passado nas costas, amarradas num pano colorido; duas tranças longas e pretas, uma de cada lado, saia até os joelhos, meia-calça e sandália e um olhar pesado, cansado e doce, “que va llevar?” perguntam com voz aguda, resiliência de mulheres de barro. como La Paz, que é de barro, às vezes borbulhando dentro das casas, às vezes despencando dos barrancos, todas as vezes evitando ver o problema humano. deixa os problemas choverem, lixo e plástico que se espalham por paisagens magníficas.
bolívia crua, eterna, no tempo de um oceano seco, um deserto de sal. bolívia e suas piras, fetos de lhama à venda na feira, sacrifícios para os edifícios, humanos sem futuros enterrados sob o asfalto, do deus-Estado e da Pachamama, Evo e todos os atentados, uma população de opinião e fé, ídolos da esperança e da fertilidade, campos de quínoa à beira da estrada, milho, batata, ervas, queijos. comida a mais direta, em linha reta, carne ou frango, arroz e batata, às vezes uma salada, sempre sem molho. pase, pase, hay chancho hay picante de pollo hay ají de gallina, gritam desde todas as bancas do mercado, às vezes eu me sentia nua e queria ser invisível para que não me tentassem seduzir, já deixei de pedir suco porque as mulheres das várias bancas de suco me atacaram simultaneamente com todas as opções de seus cardápios. bolívia tem barulho, tem os entonados chamados aos ônibus, oruro oruro, coooochabamba, uyuni uyuni, orquesta caótica, comércio puro, caos fluindo.
bolívia onde o andino e o colonial se fundem mas não se confundem.
bolívia onde as crianças trabalham legalmente porque protestaram para conquistar esse direito. o “sindicato de niños” defende condições dignas.
dos mistérios mais estranhos, num ônibus ouvi dizer, por alguém que soube por alguém, que na Bolívia há hoje ainda sacrifício humano: embaixo da construção de um grande edifício, por exemplo, para garantir que ele seja estável e seguro. o sacrifício é voluntário: quem já não vê sentido em sua vida pode oferecer-se à morte em troca de uma compensação financeira à família. isso foi que eu ouvi dizer… e se parece raro, é como no Peru existiriam os pishtacos: li num livro de Mario Vargas Llosa enquanto eu viajava pela terra dele, ele não explicava bem naquela parte, só citava, eu li enquanto estava num microbus voltando do Machu Picchu em direção a Chinchero e perguntei pra mulher sentada ao meu lado: ela explicou que eles, os pishtacos, matam humanos pra tirar a gordura e vender. perguntei se ela acha que eles estão por aí, ela deu uma risada confusa e disse algo como vixe, eu é que não sei, mas acho que sim… (pois curiosa num google encontrei a BBC tratando de um caso em 2009: quatro homens detidos acusados de assassinato e venda de gordura humana — cada litro, 12 mil dólares num esquema de tráfico internacional para cosméticos, que a indústria cosmética, claro, nega.)
a terceira anedota a compor o cenário da troca de matéria humana foi de uma amiga peruana com quem convivi em Pisaq. nascida e criada na região de Puerto Maldonado, fronteira com Brasil, ela tinha uma história contada pelo seu pai em seu tempo de criança: que o pai e um amigo saíram andar pela mata, como era de seu costume; passaram frente a uma caverna que os convidou a entrar, dentro uma senhora em cadeira de rodas e um cheiro sublime de algum tipo carne, ela os acolheu generosa e ofereceu da carne de todas a mais gostosa que já provaram; ela retirou-se um momento e eles abriram uma cortina e viram lá cadáveres humanos, partiram correndo em disparada sem olhar atrás.
Bolívia
onde o passado não some,
cascas expostas do tempo nas ruas,
no campo, nas costas,
nos cabelos trançados das mamitas, das cholas,
de saias, meia-calça de algodão e pequenas sandálias
O passado em rugas e em sua maneira brava
semidesdenhosa de vender e falar
firme e impassível de sedução ou captura,
como enxergassem clara, nos olhos do turista,
a perda de vista da memória
e vissem profundo, nos olhos do mundo,
a ilusão que o consome
No presente dissecado, as intrusões
dos espanhois, Cristos em sítios sagrados,
o idioma conquistando lábios;
dos chilenos, que levaram a costa,
a revolta deixada nos olhos secos;
dos insumos globalizados,
os plásticos, as placas de coca-cola
adornando os menus tradicionais
dos mercados
Bolívia,
decadente e invencível,
ressentida de tantos nós da história
fundada em alma andina
aymara-quéchua
resistência sagrada
sob o sol
dos séculos e altitudes
sob o vento de milhares
de anos e metros
Humanos à terra abertos
em oferendas-pagos para Pachamama
espaço-tempo mãe
dar de si o melhor de volta
à terra que como o cosmos
tudo troca — Ayni
e como dando se recebe
da semente à boca
agricultura é obra
do tecido cósmico
Bolívia, de luz e sombra
na guerra da troca
terra de sacrifícios
animais e humanos
fetos de lhama
e outros mistérios
mais ou menos literais
e os sacrifícios no trabalho
que lhes exaure, da manhã virgem à noite tarde,
tanto que dormem enquanto o fazem,
A mamita entre seus legumes,
olhos caídos, queixo no peito,
faca na mão
sacrifícios cruzados:
nos braços abertos do capitalismo,
a degeneração do campo,
venenos e êxodo urbano.
nos ecos eternos dos antepassados,
o culto ao cultivo, à colheita,
à mãe do mundo
à chuva os prantos
terra de cruzamentos,
território com Estado
plurinacional? Estado
tal qual
mil faces do governo ao quadrado
batatas papas de quatro mil espécies
um relógio que gira ao contrário
na praça Murillo em La Paz
indígenas na capital
e aos gritos, a sociedade
vibra anúncios, chamados
Hay chancho hay pollo
hay ají de pimienta, pase!
Hay papa hay cebolla, que va llevar?
Baja, baja! Sube, sube! Pasa, pasa!
Oruro Oruro! Uyuni Uyuni! Cochabamba!
cheios de ritmo e melodia,
barulhos numa orquestra de fim de mundo,
todos os sons ligados,
vídeos, jogos de celular,
vendedores ilimitados
e a eterna cumbia do chofer
melancômica, Bolívia
ponto focal da encruzilhada
a cola que aos mundos junta
é a própria contradição
sem desgaste
o sujeito ch’ixi cavalga
em vários mundos
sem cisão
na explosão do contraste
o passado diante dos olhos
o futuro na contramão
história viva, Bolívia
a terra arde
salar de uyuni
Tomamos um ônibus de linha para dentro do salar, embora o lobby das agências de viagens seja rígido em ameaçar e restringir a venda de passagens a turistas, que éramos. Eu e os dois reis íamos de barraca e cuia; negociamos e conseguimos embarcar.
Da janela, um deslumbramento branco rompe o olhar em direção a todos os horizontes. Ao longe, espelhos de céu e sal. O ônibus-nave mergulha cada vez mais fundo, duas horas deserto branco adentro. Aproximando-nos do destino, a luz refletida do sol multiplicado rasgaria as pupilas dos olhos.
Chegamos à ilha de Incawasi, “casa do Inca”.
A ilha é um brevíssimo verde acinzentado em meio ao branco sem fim, como uma ilha num vácuo. Tão ilha de si mesma que sua sombra se projeta sobre o sal. Os protagonistas são cactos centenários: terão visto chegar invasores e testemunhado toda a colonização. Havia um pequeno número de construções em pedra, cinco homens que trabalhavam no local, e vida em discretíssimo movimento.
No passado, incas habitaram aquela ilha(!). Por quanto tempo e com que bússola terão caminhado para encontrar o pequeno recinto em meio ao nada-tudo? Não há caminho, o homogêneo confunde os sentidos. Mesmo hoje, alguns dos ônibus que (quase) diariamente percorrem o trajeto da cidade à ilha são passíveis de perder a direção e chegar por engano à ilha vizinha (a solidão tem uma irmã; universo de par em par).
A ilha é populada por cactos, vultos de coelhos, secretos colibris, pedras vivas e um silêncio extradimensional. Vida lenta. O perímetro da ilha é contornável em minutos. Levantando a vista, um oceano branco tão feroz que rompe a distância e derruba o olhar. O branco chega à Ilha parecendo costa seca. Para poder pousar os olhos. Um dia foi mar, o tempo reconta.
Quando chegamos, num dia de fevereiro, os cinco trabalhadores de Incawasi se dedicavam à reforma das mesas e bancos de sal que ficam na entrada da ilha, de frente para o salar. O sal usado na construção sai de dentro da terra, viaja até alguma indústria que refina e empacota e manda de volta em embalagens de plástico. Ele sai de algum dos metros de profundidade que leva o salar, viaja e circularmente retorna ao berço, doutro modo, para outro uso. Sale el sal y vuelve a de donde vino — dissemo-nos em tom de brincadeira poética, essa que salva da ironia da civilização. Os homens passam meses sem sair da ilha; vivem em isolamento e são doces e calmos. Ofereceram-nos habitar o “refúgio”, um quarto adjunto ao pequeno museu. Na entrada do espaço, uma mesa cerimonial dispunha folhas de coca e itens sagrados. Ajoelhadas ante ela, duas estátuas; uma mulher e um homem rezando.
Multiplicação infinita do sol no solo: luz contra os olhos.
Os cactos imensos são imponentes personalidades. Falos de quatrocentos anos de idade subindo ao céu. No centro da ilha, ao alto, uma caverna de pedras: túnel frio, escuro e úmido, útero vivo, rainha da terra. Falos de Wiracocha e ventre de Pachamama.
Ilha da consciência, batizamos-na.
Caminhamos para além pelo sal até que nos engolisse. Nua no meio do mundo, senti-me saborosa como o mundo, aquosa, picante, salgada, derretendo com os raios de sol. A Terra me enche a visão ao limite do espaço. Infinitas paisagens infinitas cabem num planeta redondo. Todos esses mundos cabem nos meus olhos e meu corpo é parte de todos esses mundos.
Ao pôr do sol, adentramos a caverna. Rituais de curar e misturar o feminino e o masculino. Atravessamos o túnel, ventre da terra, e nascemos do outro lado, onde o céu incandescia. Nascer é como pegar fogo.
A lua insinuava dominar o céu. Ciclos de cores de um tempo lento, quase paralelo. Espetáculo interminável.
O salar reflete a luz da lua, a lua reflete a luz do sol, o olho reflete todas as luzes.
A vida irreflexível acontece para si mesma. Ali, no centro de tudo, onde só há sal e luz anoitecendo, o vento sopra sem buscar ouvidos. A vida é sua própria testemunha.
De madrugada, estrelas polvilham o céu, quase branco de sal espaçado no breu. E luzes passantes e relampejos, misteriosos segredos da noite.
Ao nascer do sol, dois dias mais tarde, contemplávamos o céu e o sal coloridos (sem haver ainda superado o espanto).
O ônibus que leva de volta passa uma vez por dia, às 6:30 da manhã, com exceções. Recomenda-se falar com o motorista na ida para confirmar se haverá ônibus de volta, e insistir lembrando-o de passar pela ilha. Na primeira manhã, fomos ao ônibus para a consulta. “Pasará el omnibus mañana?”; “Posiblemente”, respondeu o motorista.
Às 6:30, estávamos despertos, e hipnotizados, no topo da ilha, vendo o mundo girar e avioletar-se, alaranjar-se. Do alto, vimos vindo o ônibus. Como se incapazes de reagir, o corpo insistindo em ficar, nenhum de nós se moveu, suspensos diante da bola de fogo que subia.
Por fim corremos, no último segundo, primeiro de razão, mas o veículo já se perdia de volta no mar seco feito um pequeno brinquedo num mapa sem dimensão.
Atordoados pela hipnose; fizemos as malas e sentamos à frente da ilha, nos bancos e mesas de sal, arrebatados pelo lugar, semirrefugiados, curiosos pelo destino, já com menos alimento disponível e os olhos espremendo luz.
Uma hora mais tarde, segundo ônibus inacreditável, miraculoso vem do horizonte. Corremos acenando, estupefatos. O ônibus, se não foi uma miragem, passou sem nos avistar.
Descridos, mas sem perder a ternura, seguimos em visão de arrumar forma de voltar à terra conhecida. Um milagre, por favor.
Veio, na forma de um carro de excursão que, devendo sempre sair cheio de seis turistas, tinha saído pela metade (por um mal de altitude que acometera aos outros). Que ninguém, nem agência nem concorrentes, visse a boa ação do motorista, foi a condição.
Fomos embora de carona, com o motorista, dois franceses e uma austríaca.
Última dose de espelhos — fenômeno de confundir o labirinto, céu que se replica no sal brilhoso de chuva.
Psicodelia de um planeta diferente de si mesmo.
Peru em mil ventos
Os dois lugares (Bolívia e Peru) têm histórias e espíritos aparentados (tanto que seus nomes e fronteiras são mais recentes que os lugares), embora com graves diferenças, tanto em nível grosseiro (concreto) como sutis (o invisível que atravessa).
universo vivo
em Pisaq, Cuzco, Peru, fui para a casa de Danitza, una amiga abuela jovem, herdeira ativa da tradição andina, que dialoga com as forças e espíritos da Terra e do universo segundo aprendeu pela linhagem de sua família e em anos vivendo numa comunidade tradicional Q’ero. ela me ensinou um pequeno canto do que sabe, cozinhou pratos típicos e me serviu a medicina wachuma. as citações adiante são dela, que me concedeu uma entrevista no quintal de sua casa, de frente para os apus (morros).
a folha de coca, me ensinou, é uma espécie de ‘moeda cósmica’, assim como o tabaco. mensageira e comunicadora. “el espíritu de la coca actua através de nosotros.” faz-se um ‘quinto’ unindo três ou quatro folhas — como as organizo é como organizo minha vida — e se as assopra com intenções nas quatro direções, pedindo pela Pachamama, pelos apus, pelas águas, pelos seus, por si, pelo que sentir. nos andes, a sabedoria maior é a coca e a espiritualidade mais viva é a oferenda.
La quínoa, quiwicha, traz muita inteligência à mente. Tudo tem um espírito. O algodão tem sua força particular. “Cuando nos ponemos con esos tejidos, estamos cubiertos de esa energía”. “Es amor a tu piel, a lo que va absorver, a lo que te va a cubrir”. “Tiene un sentimiento”.
Tudo está conectado com a frequência do cosmos.
Todo está vivo.
piedras rios cerros pozos
cerdos vacas llamas templos
ojos taitas viejos cactos cantos mamas
wayra inti nina yaku rezos sueños
Levantar as mãos ao sol pela manhã e trazer a energia ao peito traz um dia melhor.
Do lago Titicaca, chorado por tata Inti, deus Sol, saíram os primeiros incas: o casal formado por Mama Oclo e Manco Kapac, para levar conhecimentos e a sabedoria do sol aos povos humanos que viriam a formar o império. Saíram das águas empunhando varas douradas. Eram seres gigantes sem corpo físico. Viviam de luz solar, de ar puro, da energia dos cristais, das radiações do cosmos e bebiam água de raio, como também fizeram nossos ancestrais físicos.
Mama Oclo ensinou os saberes femininos, Manco Kapac, os saberes masculinos.
As mulheres e seres regidos maiormente pela energia feminina: tecem, preparam chicha, são filhas da lua, cuidam dos animais, confeccionam roupas, conhecem plantas. A sabedoria feminina é a da interação, “no solamente aqui, pero con el cosmos. La mujer siempre ha sido aquella que sabe cuando va a haber un eclipse, cuando va a haber una lluvia de meteoros…”. e ainda temos a capacidade de estar atentas aos grandes movimentos cósmicos.
Os homens, ou seres regidos pela energia masculina, são guardiões da terra e dedicam-se ao trabalho com ela.
A cosmovivência andina opera na dualidade feminino/masculino; não em dicotomia, mas em complementaridade. as duas energias estão presentes em todos os seres, guardadas as características de cada polo.
Pachamama e Wirakocha são as duas energias puras do cosmos, do universo, energias criadoras que nos deram a vida.
Pachamama é mãe de todo o espaço-tempo, inclusive e além da Terra. “Todo lo que vemos abajo, arriba, adentro es parte de la Pachamama. Eso es para nosotros la naturaleza”.
Wirakocha é pai do universo, do céu, do invisível.
“Tenemos en el alma, en el espíritu, en la sangre el ADN de ellos”.
Machu Picchu: enorme cidade de pedra, as pedras enormes, mistério vivo de uma civilização antiga cujas edificações duram e provam mais do que nos alcança a mente atual.
“La gran pregunta que hace el alma diante de Machu Picchu.”: eu me fiz, também. o que é um ser humano? o que significa estar vivo? qual o nosso poder?
Danitza contou que creem em ciclos temporais de 500 anos em que se alternam eras de escuridão e de luz. Trata-se de um tempo cíclico e não linear — o passado está à frente, porque o vemos; o futuro está oculto, às costas. Quip nayr uñtasis sarnaqapxañani significa (em tradução desleal) “olhando para trás e para frente (para o futuro-passado) podemos caminhar no presente-futuro”, ou, em outras palavras, que para caminhar adiante é necessário olhar para trás. No momento, estamos entrando em uma era de luz. Será preciso limpar o corpo das marcas de má alimentação, tristeza e cólera que nos embotaram.
Hoje extraímos mais da Terra e produzimos mais lixo que nunca antes.
nas sementes, o DNA, a consciência, o espírito do cosmos.
a espiritualidade começa na terra, no cultivo e na alimentação.
a semente é o ponto focal de uma espiritualidade viva — cosmovivência.
“ni siquiera es considerado como espiritualidad”, diz Danitza; é apenas um modo de viver. em conexão.
e observa: a cosmovisão andina não é dos Andes — é do universo, das estrelas, da Madre Tierra, y el andino & la andina solamente la han cuidado.
wachuma
13.01.20 – ontem tomei wachuma, teletransporte pras alturas. Danitza serviu do cacto que na véspera colheu do seu jardim e cozinhou – por oito horas, na receita que aprendeu com Mama Sonqo, que leva maçã (boa para a mente) e cana (para trazer doçura). wachuma é um cacto natural dos andes, também conhecido como "são pedro", usado na espiritualidade andina desde os incas. os incas costumavam tomar para caminhar de noite, porque dá luz nos olhos, e se vê o caminho com o olhar. tem também uso terapêutico, abre o coração à vida e aos sentimentos. wachuma vem do quechua: wa = waw! el asombro de la vida, o espanto, o encantamento da vida; chuma: pasta que conecta polos, une cabeça e coração. devolve pra cabeça o encanto da vida e da natureza. wachuma, abuelo de las estrellas. pedi à planta que me ensinasse a arte de estar satisfeita.
primeiro nos separamos, fui e fiquei na beira do rio, diante das ruínas, feliz como criança. a beleza do rio cristalino, as ruínas vivas, as árvores de eucalipto (era impressionante o brilho, fosforescente), quase falavam ou falaram comigo. cantei, observei, rezei e me comuniquei com o mundo. passei as horas com facilidade. vi um casal atravessar o rio: a menina era eu, hesitante, embora aventureira, o menino ali, paciente e confiante, ela jogou primeiro a mochila, depois enfim passou molhando os pés, e o casal subiu correndo as escadas das ruínas.
chorei e ri de orelha a orelha com a terra que chora e que ri. que fenômeno um planeta tão vivo. e eu viva dentro dele. cheguei ao arco-íris inca.
medo do mundo espiritual porque é absoluto, infinito, desconhecido e tem tudo, bem e mal e tudo.
quantas bençãos a terra dá; o coração vibrando até emitir som.
buscar equilíbrio entre os quatro corpos – físico, mental, emocional e espiritual.
estou muda de deslumbramento.
depois nos reunimos: Danitza cantou, rezou, fizemos yoga, acendemos fogo. nos soprou tabaco. me deu um nome: Warmi Wichi Sonqo.
levei quatro compromissos: 1) com a verdade, 2) com a Terra, 3) com a cura das relações, 4) com a paz.
me sinto no peito da vida.
amor atômico
comunidade
As populações andinas se organizam em comunidades. Não como projeto ou ideologia, mas como modo de vida tradicional.
A comunidade é base do sumak kawsay, “bem viver”. Constroi-se com ayni (reciprocidade), munay (vontade de amar), llankay (labor, serviço, a lo que has venido, tu misión) e outros princípios quechua. Danitza descreve o ayni como “um carinho sincero”, o amor verdadeiro, que não te desgasta. “Yo llego a otro pueblo e voy llevando semillas, voy llevango estas medicinas, o plantitas de mi lugar, no? Para compartir, no? El que sabe de eses ayni obviamente también me va devolver un cariño de su parte como muestra de recibimiento. Que es algo creo natural, que está en el ser humano. O sea no es algo asi ritualizado ni nada, es como muy natural”, ela conta. Se uma comunidade passa por uma seca, outras comunidades enviam sementes ou águas ao povo que precisa. “Son relaciones que siempre se han tejido entre los pueblos”. No ayni não há desgaste energético, físico ou emocional. “Es ese cariño que te sientes completa, te sientes valorada, que te sientes correspondida, honrada, no? Este es el ayni de la vida”.
No carnaval, fazem guerrinha de batatas atirando-as entre si, expressando haver tanta abundância que podem brincar “y darse una carícia con las papas”.
O Peru tem terras comunais desde a reforma agrária feita nos anos 80. Commons: reciprocidade e participação. Participantes diversos em um sistema fértil. Objetivo maior: que siga dando vida.
Em dia de minka (mutirão em quechua, ou "faina" em espanhol ), comunidades se reúnem, cada uma em seu povoado, para trabalhar. “Con la minka, toda la comunidad sobrevive”. Um dia em que estive em Cuyo Chico, no Vale Sagrado dos Incas, província de Cusco, a comunidade trabalhava reformando a trilha que desce da estrada ao rio. Passando por ali, nos cumprimentaram, sorridentes, e como estavam no intervalo, nos convidaram a tomar chicha (bebida de milho fermentado) e mascar folhas de coca. Danitza lhes estendeu os braços com cachos de bananas.
“Todavía todo está vivo acá, se hace así las casas, y hacen la fiesta, traen comida, la chicha, dan regalos, tiran regalos y así lo bendicen a la casa. Y entonces ese hogar queda más tranquilo, creo que más poderosa la casa porque está viva, la han construído no quejandose, por el dinero ni nada, sino disfrutando, no? de hacer los adobes, pisando con los pies… y lo construyen rapidito, no? un més y ya está tu casa”.
Em alguns domingos sem faina, fazem reuniões e tomam decisões. Rimanaco é o costume de pichar coca para tomar decisões, o conversatório. Masca-se coca antes de falar.
A comunidade tem um/a presidente, que rotaciona entre as famílias: geralmente homem, com exceções. As condições para a presidência são: que esteja em seu núcleo familiar e que fale quechua. Ocasionalmente a liderança é imposta como sanção por algum mau comportamento. Hierarquia sem poder?
Muitas comunidades recusam vender suas terras. A de Cuyo Chico é um exemplo: colada às ruínas incas, sob os olhos grandes dos especuladores, preferem a comunidade.
Os três princípios da vida em comunidade andina são:
1. Ama sua: não roube,
2. Ama llulla: não minta,
3. Ama quella: não tenha preguiça.
Tais princípios foram um hibridismo colonial que substituiu sua anterior estrutura moral:
1. Allin ruray: trabalhe,
2. Allin yachay: educa-te,
3. Allin munay ou sonkoy: pratique o amor, queira bem.
Assim perduram através dos séculos, resistindo ao capital e à cultura hegemônica.
Ancestralidade viva.
ps: vi o que quis ou vi o que vi? encruzilhada, média ponderada.
ps2: coisas em comum que vi entre os andes e os yawa e que levo-trago comigo:
. chegar oferecendo. nunca de mãos vazias,
. contar histórias,
. vida em panaca: comunidade de famílias, família em comunidade,
. espiritualidade e natureza são inseparáveis,
. crianças aprendem a trabalhar,
. artesanato é parte da vida, tecer a vida,
. minka, menesey: mutirão, trabalho coletivo pelo bem comum.