O inconsciente está na superfície: diário de bordo de um retiro Vipassana

Noa Cykman
11 min readNov 7, 2022

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Mergulho: corpo e silêncio

Vipassana é uma técnica de meditação contextualizada na cosmologia budista e dedicada a desenvolver a consciência da impermanência através da observação das sensações no corpo, como meio para conduzir a mente à liberação. A liberação consiste na extinção do sofrimento, pela extinção das causas do sofrimento, uma vez que a mente se desfaz das amarras do apego e da aversão e fica, portanto, livre. Ensina-se Vipassana em retiros de meditação de dez dias oferecidos em diversos centros no mundo, espalhados a partir das ações de N.S. Goenka na Índia nos anos 70. Durante o retiro, entre uma jornada completa de meditação diária e o silêncio (externo) das outras horas, tive a oportunidade de me dedicar a observar o vai-e-vem desses fenômenos em minha mente e em meu corpo.

Dhamma Vaddhana Vipassana, Twentynine Palms

Cheguei no centro do retiro num calor de verão desértico, em Twentynine Palms, California, próximo a Joshua Tree National Park e aos desertos de Mojave e Colorado. Sentia-me aberta, disponível e disposta, numa combinação de curiosidade e interesse pela prática somados à expectativa da pausa (uma dispensa da ordem e das demandas da vida usual). Visualizava-me prestes a atravessar um rio cuja margem oposta eu não conhecia, nem era capaz de prever. Indo entrar em mim. E, através de mim, na realidade. Cheguei comprometida com a investigação da natureza de minha mente. Mais tarde descobri que minha mente animada era parcial.

Os primeiros dois dias foram agradáveis e passaram rápido, para minha surpresa. Parte disso vinha do conforto com a lentidão e com o “ócio”. Sentia-me mergulhada em uma gota de tempo, num voo subterrâneo; não contava dias ou horas restantes. Completava 7 ou 8 horas de meditação diárias, e deixava minha mente pairar e flutuar no quarto em interstícios, olhando a parede bege. Profundo descanso. Ao fim do dia, sentia-me um pouco menos animada, mas o discurso de Goenka (que assistimos em vídeo — e que mais tarde foi semente para minha revolta) renovava meu interesse, propósito e determinação.

No terceiro dia, meu corpo começou a reclamar. Crise por dores físicas. Medo de que aquilo não fosse benéfico para mim. Eu me dizia que longas horas sentada poderiam apenas intensificar as dores, embora a teoria fosse de sua impermanência. Na fronteira entre a resiliência determinada e a necessidade de autocuidado e precaução, passei o dia em tensões e negociatas internas, sem resposta clara. No quarto e no quinto dia, semelhantes medos e conversas produziam um crescente cansaço da mente.

Ela tornou-se — a mente — deveras animosa e hostil na metade do curso, quando o cansaço e a impotência para operar com seu hábito familiar já lhe desbancavam. Eu deliberadamente exercitava funcionar desde outro lugar, fora de seu domínio, e ela então arrancou em suas revoltas. Ela gostaria de conservar tudo como de praxe, manter o controle, seguir o padrão. E, como é típico de uma mente entediada e ameaçada por uma nova autoridade, começou a vasculhar e suscitar problemas, coçar neuroses e fazer escândalos.

Casa de espelhos

Entrei numa dessas salas em que alguém se vê por todos os lados — versões mais nítidas, mais distorcidas, maiores, menores, simétricas, assimétricas, antigas, futuras, reais, imaginadas, numa multiplicação indefinida: mas sempre variações de mim e de meus mecanismos mentais em reflexos intermináveis, uma replicação multidirecional da visão de minha mente operando, padrões que se repetem em todos os espaços.

Um deles: assim como a cada dia de retiro eu acordava animada e terminava rançosa, assim como o iniciara com vertigem e mais tarde me atacou a náusea, assim também idealizo parceiros, projetos, programas, viagens, lugares, ideias, pessoas, manhãs e a mim mesma, para em seguida sentir-me furiosa quando o ideal é frustrado e despenca o absoluto-ideal ao absoluto-monstro, o próprio diabo. O resultado vem acompanhado de um depressivo conforto, aquele de retornar ao lugar familiar, embora dolorido — a identidade de despossuída, marginal, eremita, loba solitária (gozando com o sintoma, para falar com Freud).

Os espelhos mostravam a inerência do mecanismo. Se não mudo os códigos profundos de minha percepção, a experiência mental se repete. Como se eu houvesse vivido uma única experiência na vida, multiplicada em infinitas formas e fatos. Alguém me disse certa vez: como você faz uma coisa é como você faz todas as coisas. Sem distração externa para usar como pretexto às ações de minha mente, fiquei assistindo as voltas que ela dá por padrão, automaticamente.

Contemplando uma ilusão, um esquema todo de minha própria autoria e responsabilidade. Os ideais e monstros, os “sempres” e “nuncas”, os criativos atributos de minhas projeções. No mundo, tudo acontece no meio-termo, breve, por um momento, enquanto dura, parcial, em passagem — isso é que me dá pânico, não poder conter, caber. A única constante é a metamorfose. Impermanência, “Anitcha”. Não há o Deus da totalidade que me preenche a mente. Semelhante reajo também, por hábito, às sensações no corpo: uma dor que noto me assusta como se fosse permanecer. Um dia de leveza vem com orgulho de conquista, como contendo secreta expectativa de que o sentimento não passe.

No quarto dia atravessei, fio por fio, a dor nas costas com minha atenção focada e a vi se dissolver. A ponta de minha atenção percorria linha por linha o território das costas e misturavam-se na fronteira as moléculas de dor com as moléculas apaziguadas. Queria que a dor desaparecesse para não mais retornar. Armadilhas. Em todo caso, meu corpo me ensinou a trabalhar com a dor, não contra ela. Mudar a resposta altera a pergunta.

No sexto dia, eu estava em pleno regime de opressão interna, acusando-me de todas as incapacidades, falhas e insuficiências de quem sou, de quem fui e de quem hei de seguir sendo. Um general impiedoso gritando discursos prontos e terríveis sobre mim. Crise por dores mentais. A cada pensamento, ou quando me lembrava, vigiava meu foco e o retornava à respiração e ao percurso de vasculha do corpo, embora cada vez mais afetado e afastado pela exaustão combinada de corpo e mente. Espelhos. O ideal frustrado: eu que não alcanço o ideal que eu mesma criei de mim.

Duas mentes

Sétimo dia, crise por desinteresse. Recheada de críticas bem elaboradas sobre os discursos de Goenka, sobre contradições nas regras, idolatria, enviesamentos. “Dizem-me para observar as coisas como são, mas estamos em uma sala com ar condicionado”, “Dizem não se tratar de uma religião, mas contém todos os traços de uma religião”, e assim por diante. Com razão e em agonia. Crise redobrada por ver-me em crise: minha subjetividade crítica tem dificuldade de pertencer. Tentava discernir em que medida as críticas vinham de uma inteligência que me serve, que me protege de armadilhas e guarda meus valores, e em que medida vinham como mecanismo de autossabotagem, interceptando a prática com que me comprometera, a qual ainda queria desenvolver; artifícios do intelecto para pôr empecilhos à experiência. Eu sabia com nitidez que desejava estar ali; nem uma célula em meu corpo cogitava ir embora. A crítica inteligente e bem formulada que trago ao primeiro plano da mente, embora contra meu próprio desejo. Espelhos.

Minha mente sentia-se ameaçada e, longe de aceitar a perda de poder, lançava suas melhores e mais legítimas cartas para reganhar o controle. De carona com as dificuldades que se apresentavam, despendia justificativas racionais para minha indisposição. Para minha repetida surpresa e alegria, não conseguiu impor uma dúvida real. Minha mente mais ampla estava estável e mantinha meu foco desde a perspectiva mais ampla. Disse-me: a teoria e a prática propostas no Vipassana não são perfeitas, tudo bem — meu foco é a investigação de meu corpo e de minha mente, dentro de mim. Ao longo da tensão entre as mentes, testemunhei como a mente ampla lentamente ganhou contorno, espaço e consistência.

Apelidei-a de “segunda mente” (embora primordial) — a mente meditante, uma mente com raízes no corpo da vida, uma mente aberta e livre. Precisou estabelecer-se com paciência, determinação e gentileza diante da infantilidade e selvageria da primeira; pouco a pouco, sempre de novo. Como alguém que amansa um cavalo selvagem, na ilustração de Goenka: de nada serve frustrar-se, comprar a briga, entrar na luta; a forma de alcançar o sucesso é através de suave constância. Conduzir a batalha sem tomá-la como uma batalha. Treino sutil, compassivo. Aumentei meu reconhecimento da segunda mente e minha intimidade com ela nos últimos dias do retiro. Creio que estiveram concomitantes em mim há muito tempo (sempre?), mas hoje testemunho mais nitidamente o convívio das duas.

No oitavo dia, o limite da tensão, até estourar. Neste dia, joguei a toalha, desisti de me esforçar. Mal tentei meditar. Fiz dele, assim, o dia mais insuportável. O tempo tornou-se lodo, lama, eu me arrastava e me sentia revoltada e fraca. Meditar é lento e desafiador: mas não é vazio como o tédio. Lembro do dia como de uma nuvem de fumaça, resignação e lamúria. Pensei que não duraria nem um único dia além do previsto. Talvez minha mente tenha se planejado, projetando o tempo pelo qual resistiria.

No nono dia, reconciliação. Descanso e exaustão simultâneas. Atravessei o véu de resistência, de debate voluntário e gratuito, para chegar numa espécie (ainda confusa e crua) de redenção. Quando Goenka deu instruções de observação do corpo interior, vivi a mais psicotrópica das experiências (embora não seja esse o propósito do curso) (e embora fosse, ao mesmo tempo, a mais terrena e física delas): vasculhando ponto por ponto meu corpo interno, senti meus órgãos, meu corpo molhado por dentro, carne, sangue, a posição dos pulmões, do coração, intestinos, rins, esqueleto, tudo funcionando como uma máquina mágica, luminosa: aquilo sendo, de modo extraordinariamente estranho, algo que chamo de "eu".

Ninhos assim pelo espaço do retiro!

Atenção e equanimidade

Atenção e equanimidade, segundo Goenka, são as duas asas do pássaro, as duas asas da prática, as duas professoras. As pequenas pulsações eletromagnéticas pelo corpo são prazerosas e velozes. As dores são lentas e desagradáveis, mas igualmente descontínuas. Conforme explica Goenka, mesmo uma dor sentida com solidez é feita por renovados pulsos, assim como uma lâmpada ilumina continuamente através de pulsos avulsos repetidos. Um trilhão de mudanças subatômicas ocorrem durante um piscar de olhos. No espaço entre os pulsos, um pequeno portal à impermanência. Sentir uma dor dissolver-se foi impressionante. Mais tarde a dor volta. E assim sucessivamente.

A cada pensamento e a cada experiência corresponde uma sensação. Não só em mim, mas em tudo o que é vivo. Não se trata de uma exclusividade Vipassana ou budista; são características da mente natural que a meditação ajuda a acessar e estabelecer.

Ao retornar para casa e ir à aula de dança que frequento, senti-me tão livre e alegre que logo pensei ter conquistado um novo estado, a habitar e manter. Notei a intensa frequência da armadilha.

Sensações emergem e se dissolvem; prazer e dor são pulsos.

Buda e Freud

É central ao budismo o objetivo de transcender as oscilações e impulsos do desejo para alcançar a liberação. Na psicanálise, o objetivo da análise é que o sujeito, ao contrário, se encontre com seu desejo. Freud e Buda concordam que “desejo é falta”, mas bifurcam quanto às respostas. A psicologia budista vê a abordagem psicanalista como insuficiente, pois o desejo sempre termina e se renova, impondo a insatisfação, a incompletude como condição crônica.

Em outra discordância, segundo Goenka, o inconsciente não é oculto: está à flor da pele, literalmente, manifesto em nossas sensações, respostas condicionadas. A mente reconhece um estímulo, recebe-o por alguma das portas da percepção, experimenta uma sensação e registra disso uma marca. O inconsciente está na superfície, e nessa superfície pode ser trabalhado, por meio de um reconhecimento constante e equânime das reações aos impulsos. Embora devota da psicanálise, reconheço que experimentei maior facilidade em lidar com a observação da sensação do que do pensamento, enquanto algo tangível, observável.

Leiga (porém ativamente curiosa) tanto da psicanálise quanto do budismo, compartilho reflexões livres de autoridade: suplantar o mecanismo de desejo e aversão me parece suspeito, até antinatural. O aroma de uma fruta fresca gera desejo; o cheiro de fruta podre gera aversão, por sabedoria do corpo, por instinto de vida. Desejo de água, de amar e de receber amor, de preservar a própria integridade; o desejo é o motorzinho da vida, origem do universo. Segundo a Cabala judaica, dois desejos regem a existência: o desejo de receber e o desejo de dar. O “pecado” consistiria em desejar receber só para si. “Cabala” é a arte de desejar receber para dar.

Penso que, num caminho do meio entre as perspectivas, me serve uma prática de apuração: polir os impulsos de desejo/aversão, desenvolver uma escuta atenta e profunda de mim mesma, identificando as tendências e agindo com atenção, usando o desejo e a aversão como ferramentas para me situar e me mover no mundo. Evitar que se esparramem com ou sem causa (ex.: consumismo — desejo compulsivo; racismo — aversão ignorante); mantê-los sempre à vista e ativos. Sem impor uma aversão ao desejo/aversão, nem um desejo pela exterminação do desejo/aversão, mas uma equanimidade viva, uma “vacuidade alegre”, dançante, observação e brincadeira de viver com os fluxos, afinando a linguagem interna, as setas, sinais.

The show must go on

Alguns dias após o retiro, atacou-me uma ansiedade noturna, obscura: acordei sentindo meu corpo espremer-se por dentro como num expurgo, compreendi deixar a dor estar para deixar sair, limpando.

Ao estudar a transitoriedade das sensações físicas, aprendi sobre a transitoriedade dos pensamentos, das emoções, e dos eventos. Ao exercitar a equanimidade diante da dor ou do prazer no corpo (evitando gerar aversão ou apego), treinei a sabedoria da não-reação, abrindo espaço entre estímulo e resposta e permitindo a ação consciente. Logo da aversão que surge — tão logo quanto me lembre (e o tempo aumenta com a distância do retiro) — respiro e noto as sensações em meu corpo com a curiosidade de uma cientista. “Let me see how long it lasts”, diz Goenka, vejamos quanto dura.

Embora eu ainda seja a mesma, inclusive em minha ansiedade, em minha desorganização etc., desenvolvi familiaridade com meios hábeis para ter mais agência sobre elas e reconheço o potencial desse caminho. Apenas um pequeno passo de uma montanha alta e íngreme. Sobretudo, como escutei inúmeras vezes no curso, é preciso perseguir o aprendizado no nível experiencial. A compreensão no nível intelectual não o substitui.

Minhas dores nas costas, que precederam e preencheram o retiro, reduziram-se abissalmente após o término, a despeito de meu grande medo (intensa aversão) de que permanecessem ou piorassem. Concluí que minhas dores na posição sentada de meditação eram dores corretivas. Se minha posição “confortável” é, na verdade, torta e nociva ao meu corpo, a posição confortável, alinhada e em equilíbrio lhe é estranha e exige construção. Tal qual na mente: quando penso que o torto é reto, porque me é familiar. Submeter o torto ao alinhamento é desafiador e satisfatório.

Trata-se não propriamente de um ângulo, mas de uma amplidão — minha presença completa, as sensações que acompanham a respiração, a extensão de minúsculas experiências desde o topo da cabeça às pontas dos pés, a constante metamorfose molecular.

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Para mais infos e datas de cursos Vipassana: https://www.dhamma.org/en/courses/search

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Written by Noa Cykman

Humana, socióloga, amiga das palavras e das utopias

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