O que vi e vivi na aldeia

Noa Cykman
39 min readApr 27, 2020

Desde a vila de São Vicente, município de Tarauacá, Acre, Ricardo e Manoel Preto me levaram de barco pelo Rio Gregório, descendo mais de três horas por muitas águas, entre verdes de ambos os lados.

Cheguei na aldeia em 1o de dezembro de 2019. Estive lá por um mês, num mundo semiparalelo, onde o espaço, o tempo, o humano, a vida e o próprio mundo são um pouco outros.

No tempo que permaneci, saí da aldeia poucas vezes, apenas a outras aldeias, e nenhuma vez voltei à vila, acirrando a sensação de estar em um universo à parte, na tensão espacial entre uma aldeia circunspecta e uma floresta imensurável, onde é melhor não se perder. O tempo era muito mais extenso, como se restituída sua devida consistência, paralela à aceleração da cidade. Os dias começam cedo, semanas duram, cerimônias vão da noite ao dia. O mundo é aquele presente, sem tentáculos: a vida de cada dia, a aldeia, as pessoas, o trabalho, cozinhar e lavar, caçar e pescar, a mata, crianças correndo, banho de rio, violão e tambor, cerimônias de Uni (Ayahuasca, bebida enteogênica tradicional). Daí para cima, uma multiplicação de realidades.

À beira da aldeia, o Rio Gregório

Yawanawa é o “povo da queixada”, bicho que anda em bando. Outros povos indígenas têm o nome associado a outros animais — Iskunawa, povo do japó; Shanenawa, povo do pássaro azul; Kaxinawá, povo do morcego etc. Os incas têm o nome de “povo da pedra”. Os brancos são Ruwenawá, “povo do ferro” — com máquinas, veículos, armas.

Da etnia Yawanawa, a aldeia em que estive foi fundada há poucos anos. O espaço é parte de um território circunscrito — Terra Indígena Rio Gregório, demarcada via luta, nos anos 80 (negociada com o apresentador de televisão Ratinho, proprietário da região). Formou-se maiormente por dissidentes de outra aldeia, onde conflitos com as lideranças se multiplicavam. A aldeia teve o propósito inicial da liberdade religiosa: muitos indígenas tornaram-se evangélicos com as missões estadunidenses, que estiveram presentes até os anos 80. Enquanto a outra aldeia repudia os cultos, a nova aldeia é marcada pela convivência entre a crença evangélica e o xamanismo tradicional.

Ao chegar, fui recebida pela mãe do cacique. Mostrou-me minha cabana, um espaço de madeira, amplo, confortável, onde me instalei com uma barraca e uma rede. Depois, levou-me à casa de uma de suas filhas, onde preparavam o almoço. Fui apresentada à filha. Ela parou, olhou em meus olhos, segurou minhas mãos com firmeza, e me disse que estavam ali para mim, para o que quer que eu precisasse. Assim também com cada membro da família e das outras famílias que conheci posteriormente, e pelo cacique, que chegou um dia após; fui recebida com ternura, qualidade de presença e solicitude.

Dezenas de crianças correm e brincam juntas pela aldeia; as pessoas se arranjam e desarranjam como moléculas. A família é a ordem do dia: famílias imensas, numa multidão de irmãs, irmãos, primas, cunhados, sobrinhas, genros, avós. Comunidade de famílias, família em comunidade. Primos/as são irmãos/ãs (segundo seu sistema de parentesco tradicional, filhos de tios e filhas de tias são literalmente irmãos e irmãs, enquanto filhas de tios e filhos de tias são para casar — hoje a regra não opera, e dizem considerar-se irmãos e irmãs aqueles que foram criados e cresceram juntos, que "dormiram na mesma rede"). Casam-se jovens e procriam em abundância. Homens espalham filhos por diversas aldeias, nem sempre assumindo compromisso paterno. O ambiente é familiar: embora não homogêneo, e mesmo permeada por conflitos, como toda sociedade, uma unidade reúne todos os membros da aldeia. Todos se conhecem, todos dão-se as mãos ao dançar.

As mulheres cozinham, lavam louças e roupas, limpam a casa, cuidam das crianças. Homens dedicam-se a tarefas de construção, roça da grama, caça. Ambos os sexos produzem artesanato (adereços feitos de miçanga; cerâmica; aplicadores de rapé). A divisão de trabalho entre os sexos é bastante clara, embora também se transforme ao largo da história. Recentemente, mulheres Yawanawa passaram a assumir postos de liderança política e espiritual em algumas das aldeias, o que antes era impensável. As mulheres próximas ao cacique (irmã, mãe, cunhada) cozinhavam para ele e a família. Cada casa cozinha para si, mas transitam sem parar, visitando-se e convidando a comer. Corre uma espécie de comunicação infinitesimal, como formigas tocando antenas, e mensagens espalham-se rizomaticamente (por exemplo, a convocação a uma reunião, o anúncio de um trabalho necessário, a presença de uma sucuri no rio, …).

Ainda no domingo em que cheguei, tomei banho de rio, e, a convite de um dos irmãos do cacique, fui jogar futebol com os homens. Jogavam no terreiro em que se fizera a cerimônia de Ayahuasca na véspera. Fez-me recordar os cachorros de palha chineses: bonecos usados como oferenda aos deuses, reverenciados durante o ritual, depois varridos e descartados. Uma guardiã peruana da cosmovisão andina analogamente me disse, sobre sua cultura: não é “espiritualidade”, não são propriamente rituais; é o fazer-se cotidiano da vida em um universo sagrado. Ali, assim, não havia hierarquia entre o terreiro de cerimônias e a quadra de futebol. Como revezávamos os times no jogo, a nuvem de crianças circundantes me cooptou a suas brincadeiras. Mais tarde, juntei-me a um grupo de jovens que tocava violão e cantava saitis, cantos tradicionais. Até que uma pessoa veio ao grupo e pediu para reduzir o volume, pois logo iniciaria o culto evangélico.

Senti-me acolhida e bem-vinda em muitas casas. Em cada uma, sempre me convidavam a entrar, conversar, almoçar. Também convidavam a ir aqui ou acolá quando iam visitar outra aldeia ou fazer algo em outro lugar. Têm uma maneira terna e tranquila de receber, como se nada lhes fosse mais natural do que acolher e oferecer. É de sua cultura dar do melhor que possuem, mesmo quando seja simples.

Sendo uma comunidade, fundada em relações familiares, é também uma sociedade de classes, com hierarquia e desigualdade. O jovem cacique é figura central — como um rei, um sol — que olha pela aldeia, toma decisões e ordena os trabalhos do dia. Os membros da aldeia expressavam em geral um reconhecimento positivo de sua habilidade e forma de conduzir. Algumas vezes, escutei críticas e discordâncias, de certo modo contidas ou resignadas. Assume, também, papel de patrão capitalista: contrata serviços (de construção, carpintaria e outros), de gente da própria aldeia ou aldeias vizinhas, pelos quais paga diárias. As pessoas da aldeia apreciam que seus trabalhos sejam pagos — muitos tiveram experiências anteriores, em outra aldeia, de exploração não recompensada e dívidas não recebidas. O capital que entra na aldeia é distribuído pelo jovem líder, sob a lógica moderna de pagamentos pontuais e lucro centralizado.

As perguntas “como se escolhe” ou “como alguém chega a ser cacique?” não parecem encontrar ressonância. Segundo me diziam, não é hereditário, tampouco alguma forma de eleição. É “natural”: são pessoas que demonstram o potencial esperado a essa função — habilidades de trabalho, capacidade de articulação política e institucional, oralidade, compromisso com a espiritualidade. Tais pessoas são “reconhecidas” e assumem a função de liderança. Na aldeia havia outros dois anciões reconhecidos como lideranças, e o cacique, jovem, estava, tecnicamente, preparando-se para o posto. Na prática, já exerce o poder. É filho de outro cacique. As diferenças de estatuto social se veem também nas condições das casas, das posses e da capacidade de circular fora da aldeia.

Durante minha estadia, foi contratada uma empregada doméstica para a casa da mãe do cacique. As mulheres que antes cozinhavam foram substituídas por uma garota de vinte e quatro anos, negra, moradora de “aldeia satélite”. Limpava a casa e cozinhava com bebê no colo. Servia um grupo variável de parentes, trabalhadores e visitantes. Ao se levantarem — os homens indo retomar seus trabalhos — ela juntava e lavava a louça. Duas irmãs suas circulavam ali, uma de dezessete anos e outra de treze, grávida. As três filhas e a mãe ocupavam um lugar limiar conhecido pelo Brasil, entre família e serviço. Muitas vezes comiam sentadas no chão, à parte dos outros, outras vezes sentando à mesa com todos. Antes e depois das refeições, era frequente ver mulheres, de todas as famílias (e de todas as classes, misturadas), esparramando-se pelo chão com seus bebês, intercambiando colos, amamentando-os e conversando entre si.

A alimentação consistia normalmente em arroz, farinha de mandioca, às vezes feijão, às vezes macarrão, muitas vezes peixe ou carne caçada na mata (paca, porquinho, veado, macaco, anta, cotia, galinha, tatu, jacaré…). Às vezes, mandioca e bananas cultivadas no local. Ingá e limão direto do pé. Ocasionalmente, comidas locais como pamonha, bacaba, banana verde cozida. Ovos comprados na cidade, assim como os grãos, o macarrão, o leite em pó, o café, sal, açúcar, óleo e outras provisões básicas. Famílias que nunca saíram da aldeia temperam o alimento apenas com sal; o contato com a cidade ampliou a gama para aqueles que circularam. A comida varia com as oscilações de fartura e falta, com relação às condições de caça e pesca, e com momentos de esgotamento e de suprimento de compras da cidade. Não parecia, em minha impressão superficial, haver sinais de preocupação quando em picos baixos; talvez por terem aprendido na escola da natureza que aquilo que há é aquilo que se come, e que isso varia.

A comida também variava a depender de quem comia. Quando o cacique ou seus pais estavam presentes, a qualidade da refeição subia. Também muda entre homens e mulheres. Homens ganham um café da manhã reforçado, para trabalhar (o trabalho da mulher, doméstico, tem menor estatuto). Em um dia especial, quando a comunidade se juntou para café da manhã e mutirão, as mulheres comeram pipoca e tomaram suco de graviola, enquanto os homens tomaram suco e comeram pipoca, cuscus, ovos e peixes, tudo preparado pelas mulheres. Em outras aldeias, segundo me contaram, é cotidiano o café da manhã coletivo. Onde estive, isso ocorreu apenas em ocasiões especiais (em um dia de mutirão, e no Natal).

O cotidiano é fluido, não linear, porque varia com e como a natureza. Oscilante e imprevisível, a lei é a do tempo. Se o rio sobe, não se pesca; se chove, não se caça; todo projeto está suscetível à aprovação ou à desaprovação do mundo. Planos fixos não sobrevivem e os desejos não podem enrijecer, porque não podem desobedecer à natureza. É preciso ter sensibilidade e flexibilidade. O tempo é outro e acompanha as transformações do espaço. Assim, o trabalho se define a cada dia. Começam cedo e trabalham duro — sob um sol pesado roçam a grama, carregam materiais, carregam louça, batem roupas, constroem casas e estruturas. Trabalham com dedicação e calma; não têm problema ou pressa em passar o dia, em demorar-se horas ou dias em uma tarefa, em atravessar o rio de barco para lavar louças do outro lado, carregando a bacia na cabeça para atravessar a aldeia; em dedicar um dia inteiro para trazer peixes. Sem ansiedade, sem excesso de longo prazo, e com direito ao descanso e à celebração. Após o término de um projeto, dão-se folga e relaxam. Tempos não contados são passados em se deitar na rede, após uma refeição, ou sem motivo.

A caça e a pesca são substanciais tanto na alimentação como na identidade Yawanawa. Os homens expressam grande prazer em caçar. De suas narrações, tenho a imagem de uma espécie de meditação radical, de fusão com a floresta para atingir o alvo. Minha repetida teimosia em querer acompanhar uma caçada não teve sucesso. De fato, eu provavelmente atrapalharia o processo. Segundo sua descrição: após chegar ao meio da floresta, em grupo, eles se separam individualmente para buscar a caça. Às vezes, têm um animal específico em mente; geralmente, apenas atentam às oportunidades. Caminham de pés descalços, pé ante pé, espingarda em punho. Em profundo silêncio e observação atenta, com todos os sentidos. Ao identificar um sinal ou avistar o animal, sutilizam em absoluto seus passos, e preparam o ataque. No caso de um macaco (caça frequente), dada a largada da disputa, deverão correr intensamente atrás do animal para mirar e capturá-lo. Matam com respeito à morte e utilizam todas as partes do animal: ossos de macacos viram aplicadores de rapé, a cabeça vira cumbuca; couros viram tambores etc. Um veado é a caça mais honrosa que se pode obter. A carne do tatu também é considerada nobre. Os homens partem de madrugada, e regressam durante a tarde, orgulhosos se tiveram sucesso. Entregam os animais às mulheres de suas respectivas famílias, que os limpam e preparam para consumo. Partes da caça (ou da pesca) são distribuídas a famílias que necessitem, ou como presentes a modo de condecorações (por exemplo, a cabeça do veado é dada de presente a alguém por quem se tenha alta admiração).

Entregando-me à experiência, provei todas as carnes que pude, de inúmeros animais, muitas delas pela primeira vez. Foi o período de mais intenso consumo de carne em minha vida. Comi carne de macaco — achei deliciosa. Perguntei-me como seria a carne humana. Buscando romper minha hipocrisia (tão comum na cidade) de comer carne sem tocar nos mortos, ofereci-me uma vez para ajudar a preparar o macaco. Pelei seu braço, raspando o pelo grosso de um braço quente, recém molhado em água fervente; parecia um braço de criança. Não aguentei por muito tempo. Minha relação com os macacos se transformou ainda novamente quando chegou à aldeia o macaquinho Ruá, adotado pois sua mãe havia sido morta na caçada (antigamente, não havia sensibilidade a isso; hoje, apenas se mata uma mãe por acidente). O nome Ruá também é dado a humanos. Ele estava tão assustado e triste que não vi diferença de um bebê humano. Acolhi-o com impulso maternal. A seguir, no almoço, havia carne de macaco. Não pude. Parei de comer macaco.

Eu e o macaquinho Ruá

A pesca é feita por homens e por mulheres, jovens e adultos, coletivamente. Membros de praticamente todas as famílias da aldeia reúnem-se para ir juntos. No período em que estive, houve dois dias de pesca coletiva, número baixo em razão das chuvas típicas, que tornam as condições adversas. Faltei à primeira ocasião, interditada por conta da menstruação, também considerada uma condição adversa (à pesca e à agricultura). No dia em que fui, éramos mais ou menos vinte pessoas. Em três barcos motorizados, descemos o rio por aproximadamente meia hora, então pisamos em floresta amazônica densa. Pintamos os rostos de urucum, vermelho protetor. Caminhamos por uma trilha previamente aberta, por outra meia hora. No caminho, o amigo que ia adiante de mim parava ocasionalmente para mostrar-me plantas, cheiros e usos medicinais. Fez um cocar de palha para ele e outro para mim. Disse que, para eles, “isso é tipo uma educação física”. Farejou, pelo cheiro, a passagem recente de um porquinho: confirmou a suspeita em pegadas no solo, e outro amigo desviou do grupo para perseguir a caça. Conhecem a natureza: sabem onde andar, como pisar, como se mover, olhar a presa. Conhecem os movimentos da floresta. Têm os sentidos atentos, antenas. Seguindo, encontramos novamente o rio.

Em um buraco no solo, despejaram o conteúdo de várias sacas que traziam a planta tingui. O veneno dessa planta torna os peixes tontos, bêbados, ou os mata, facilitando sua captura. Os homens pilaram a planta dentro do buraco utilizando ferramentas de madeira trazidas ou recém construídas, até obter uma “pasta”. Todos então dirigiram-se ao rio; há ali um remanso. O sumo venenoso foi lançado aos peixes, e aguardamos em expectativa, com a água até os joelhos ou a cintura, vestindo roupa e botas. De repente, os peixes começaram a saltar e a ser apanhados por mãos, facões ou baldes, e acumulados nos baldes. Quando cessavam os saltos dos peixes, após vinte ou trinta minutos, começamos a caminhar para descer o rio, continuando a pesca pelo caminho. Terão sido uma ou duas horas (francamente, tento apenas adivinhar os tempos) caminhando pelo rio e enchendo baldes, numa atmosfera leve (conversando, rindo) e séria (levar alimentos para casa). Eventualmente, corriam com velocidade para capturar um peixe avistado. A técnica (que tem uma variação com o uso do leite de açacu) “envenena” peixes ao longo de meio quilômetro de rio, aproximadamente, permitindo à aldeia realizar sua pesca, e ao rio limpar-se em seguida, preservando o ecossistema. Realizam também pesca com tarrafa. Retomamos um caminho por dentro da mata, até reencontrar os barcos. Esperamos por algum tempo pelo garoto que fora atrás do porquinho. Voltou sem a caça, e regressamos à aldeia. Nesse e nos próximos dias, peixe seria o centro das refeições.

Em suas práticas de caça e pesca, misturados à floresta, os índios parecem bichos, bichos que não esqueceram que são bichos, bichos mais bichos que eu — mais aptos, sensíveis, fortes, conhecedores da dinâmica da vida e da morte, responsáveis por sua própria sobrevivência. Bichos que trabalham para se alimentar. A vida pela vida, dentro da vida. Não sugiro nessa colocação nenhum arcaísmo ou forma pejorativa de selvageria, mas, antes, contato com a humanidade. Fora das dicotomias humano/natureza, natureza/cultura, corpo/espírito, humanidade e animalidade encontram-se sem contradição. E eu via neles uma forma de humanidade mais consciente e eficaz que a minha. Um bicho que esquece que é bicho, torna-se vulnerável. Eu vinha esquecendo que sou bicho.

Sou igual a todos os animais quando preciso prover alimento, administrar minha energia e gingar diante da morte. A “supremacia branca” nos distanciou da animalidade conforme nos convertemos em “consumidores” que compram o sustento através de mediação metafísica, sem mais necessidade de gerar esse sustento de forma direta através do trabalho. O poder metafísico de consumo pode ser acumulado a ponto de fazer esquecer a animalidade. Muitos sequer se preocupam em conhecer as origens da própria nutrição, e inclusive a trocam por substâncias artificiais e nocivas ao próprio corpo (fará isso algum outro animal?). Penso que uma das lições a serem aprendidas de povos nativos é que precisamos pessoalizar novamente o mundo. Ter uma relação pessoal com um mundo que é vivo. Se não produzo meu próprio alimento, como os animais, devo ao menos saber quem produz e de onde vem, assim preservando meu grau mínimo de animalidade, de contato com o mundo da vida e com as fontes do meu corpo.

Para os indígenas, a relação com a natureza é direta, tácita, ao mesmo tempo que mágica, anímica. Todos os animais, plantas, rios, árvores, pedras têm espíritos. Antes de entrar no rio, pede-se (em silêncio) permissão ao espírito da água, sob o risco iminente de ser por ela consumido. Para colher uma planta, pede-se sua permissão, dizendo-lhe o propósito; não o fazer seria o mesmo que arrancar a alguém um fio de cabelo sem autorização e sem dar explicação, segundo a imagem que me deram. “Ali também mora alguma coisa”. O mundo é um povoamento de seres; uma rede que nos atravessa e excede. A tudo é preciso dar atenção e comunicar-se. Todos os existentes, cada planta ou pedra, são entes vivos. Indígenas reconhecem os cantos dos pássaros, as pegadas dos animais, os cheiros das plantas. Sabem onde estão. O conhecimento indígena envolve a percepção aguda do mundo que habitam, e a capacidade de preservar sua vida dentro dele, sem se isolar. Seu conhecimento é “fixado na floresta”, como observou Davi Kopenawa.

Sobre animalidade humana e vulnerabilidade: Val Plumhood, filósofa australiana, refletiu sobre a relevância essencial de compreender que, como humanos, somos feitos de carne, e somos potencial alimento a outros animais (“corpos suculentos, nutritivos”). Suas reflexões nasceram do ataque de um crocodilo faminto, que a quis engolir, em 1985. “Para um ser humano moderno do primeiro mundo, ou mundo excessivamente privilegiado, a experiência humilde de se tornar alimento para outro animal é radicalmente estranha, quase impensável. E nossa história dominante, que sustenta que os seres humanos sejam diferentes e superiores a outras criaturas, é feita de coisas mentais, e tem-nos encorajado a eliminar da nossa vida quaisquer animais desagradáveis, inconvenientes ou perigosos para os seres humanos. (…) Na ausência de uma forma mais circular da experiência de predação, passamos a ver a predação como algo que fazemos aos outros, aos inferiores, mas que nunca nos é feito. Somos vitoriosos e nunca vítimas, vivendo o triunfo mas nunca a tragédia, a nossa verdadeira identidade como mentes e não como corpos. Assim, intensificamos e reforçamos ilusões de superioridade e separação. Uma vez que o potencial de experiências corretivas e punitivas foram eliminadas da vida normal, há cada vez menos experiência disponível do tipo que possa corrigir a ilusão.”

Entre os indígenas, essa ilusão, típica da mente ocidental, parece ausente. Andam misturados ao mundo, expostos. Todos têm histórias de encontro com onças. Um me disse que é “tranquilo” encontrá-las; outro concordou, afirmando não ter medo. Outro contou-me que, aos treze anos, acompanhado de seu pai, depararam com o animal, e o pai, abraçando o filho pelas costas, perguntou-lhe se queria puxar o gatilho da espingarda. A criança atirou contra a onça. Dança da vida e da morte, dança da vulnerabilidade. Dizem, também, que cada aldeia Yawanawa tem, protegendo-a, uma onça e uma Samaúma (maior árvore da floresta amazônica). E o “canto da onça”, em sua espiritualidade, serve para devorar caça metafísica, ou dores. Sob um chamado do pajé, o espírito da onça vem e tira a dor.

A animalidade de forma alguma interdita ou contradiz a existência de uma vida espiritual profunda. Ao contrário, a espiritualidade Yawanawa, como seu conhecimento, é imanente à terra e fixada na natureza. Tudo se baseia nas plantas, animais e elementos, e em seus espíritos. O mundo indígena não existe à parte dos mundos invisíveis, de que são conhecedores mestres. Os Yawanawa, como indígenas de outras etnias, exercem uma espiritualidade de alta intensidade, investindo nela como eixo de rotação da vida, do saber, da política, da saúde. Sua espiritualidade, como a vida, ancora-se na ancestralidade. Passado herdado, presentificado, e atualizado a cada passo.

As dietas são o pilar do progresso espiritual. São períodos de resguardo em que se consomem apenas alimentos específicos e em pequena quantidade, eliminando o açúcar, a carne, o sexo e a água pura (tomada apenas com limão ou em “caiçuma” de mandioca ou de banana). Podem durar de um mês a um ano. Em termos excessivamente simples, a dieta do mame (“mamãn”, mandioca) é de limpeza; a do nane (“nanãn”, jenipapo) cria proteção; a do yutxi (pimenta) aquece as palavras. A do muká, das mais sérias, dura um ano e forma os pajés, que recebem a força da palavra (sucede que aquilo que dizem, acontece: assim curam). Quem guia a dieta é o espírito da planta em questão. No processo das dietas, os sonhos têm papel fundamental, ao trazer mensagens, conhecimentos, rezas, revelações particulares.

Até os anos 90, segundo contou-me o pajé, os Yawanawa utilizavam a força do muká para o mau, para agredir ou matar pessoas, vencer guerras. (Mau e bem separados, como para mim). Há três décadas, os anciões Yawarani e Tatá pautaram que a dieta fosse feita apenas quando a serviço da paz, compromisso que se tornou condição. Seletas pessoas são admitidas a essa dieta, tendo em conta que a mesma tem efeitos espirituais, culturais e políticos sobre todo o conjunto das aldeias Yawanawa. Se uma pessoa mente ou rouba durante a dieta, a despeito do instituído compromisso de paz, diz-se que permanecerá com tal energia pelo resto de sua vida. Qualquer energia gerada ou absorvida, naquele estado de finíssima sensibilidade, permanecerá.

A mais séria das dietas é a do coração da jiboia: a pessoa chupa o coração da serpente, e segue os resguardos. O cheiro da cobra, fétido, é exalado pela pele durante meses. A quebra dessa dieta antes do tempo custa a vida — morre quem falhar.

As medicinas da floresta são também pilares da espiritualidade Yawanawa. Uni (Ayahuasca), rapé, sananga, kapun. Ao chegar na aldeia, o que todos me perguntavam era: já tomou Uni? Vamos tomar Uni? Uni é um dos muitos nomes que tem a bebida, entre inúmeras nações indígenas e nativas — Ayahuasca (Quéchua), Nixi Pae (Huni Kuin), Yagé (Siona), Kamarãpi (Ashaninka), Caapi (Baniwa), entre outros. Trata-se de uma bebida enteógena produzida pela cocção de duas plantas — Jagube e Chacrona, cipó e folha, (rei e rainha, feminino e masculino, força e luz, segundo algumas narrativas nativas). O efeito é aberto pela substância DMT (dimetiltriptamina), contida na folha, bem como no próprio corpo humano (e em todos os corpos vivos, plantas e animais, portanto apelidada de “molécula da vida” ou “molécula do espírito”). À parte as explosões de DMT nos momentos de nascimento e de morte, no corpo humano, sua ação é inibida por uma enzima (MAO, monoamina oxidase). Essa é por sua vez suspensa por outra enzima contida no cipó (IMAO, inibidora da MAO), de forma que o DMT da folha Chacrona, bem como o do próprio corpo, podem atuar. Para além do processo químico, as compreensões nativas encontram na bebida uma entidade consciente, inteligente, que se manifesta dentro da pessoa para orientá-la, ensiná-la e curá-la. É associada à Jiboia, serpente cósmica, e à sabedoria da própria natureza.

Eu já tinha contato com a planta mestra havia alguns anos, e certamente tinha intenção de aprofundar o estudo na aldeia. Já no primeiro dia, convidaram-me a participar de uma consagração “informal”, mas optei por descansar. Três dias mais tarde, houve a primeira cerimônia “oficial” da aldeia (normalmente realizada uma ou duas vezes por semana). Juntamo-nos diante do fogo, ao lado do shuhu — oca central e casa do cacique e esposa. Entre vinte e trinta pessoas presentes, de adolescentes a anciões, sentados em cadeiras ou colchonetes. Os protocolos que eu conhecia, de cerimônias feitas na cidade ou em outros contextos, em quase nada se assemelharam ao ritual na aldeia: “sem cerimônia”, a bebida foi servida, e estava iniciado o trabalho. Alguns momentos de silêncio. Então, o cacique entoou alguns cantos. Depois, o canto passou de pessoa em pessoa, seguindo a roda (incluindo a mim). Mais tarde, entraram os instrumentos — violão e tambores — e a cantoria desdobrou-se, imparável, até alcançar os primeiros sons da manhã e os raios de sol.

Nessa noite, tive uma experiência leve, exceto pelas várias limpezas, que, vomitadas, permitiram-me, segundo minha interpretação, esvaziar-me de preconceitos e expectativas que eu havia levado comigo, para integrar-me de fato e viver o presente. Na interpretação análoga de outra pessoa, eu não havia chegado até então — meu corpo, sim; meu espírito, não. Com a cerimônia de Uni, o espírito é convocado a vir, e aterrissa. De fato, senti-me chegar, e, a partir do dia seguinte à cerimônia, estive mais em harmonia com o mundo.

Fogo e lua em cerimônia de Ayahuasca

Participei de mais algumas cerimônias enquanto estive lá. Entre experiências aterrorizantes e sublimes, vivi, descobri e aprendi coisas que me confirmaram como, entre céu e terra, há realmente vasta população. Sentia-me menos segura de minha pilotagem astral, naquele contexto amazônico novo para mim. Senti que tomar Uni na floresta é uma experiência mais rústica e direta do que a que eu conhecia antes, provavelmente porque, para os indígenas, dialogar com a floresta e enveredar entre seus mistérios seja simplesmente viver a vida, enquanto, para mim, era novo e incerto inserir-me sem mediação na teia dos espíritos. Como estar na floresta, com minha animalidade precária, inexperiente e vulnerável, simetricamente, no invisível, com meu espírito aprendiz. Escrevi em meu diário: “Eu bebê numa floresta cheia, cheia de uma multidão dobrada de coisas visíveis e invisíveis, seres de todos os reinos, espíritos bons e ruins, toda espécie de bicho na terra, no ar, não sei de onde mais vêm”. Algumas dessas presenças me assombraram, em certos momentos. Em outra ocasião, a medicina me tocou a alma em sua mais fina luz. Escrevi: “é tanta coisa pra dizer, e o tipo de momento que me deixa muda. Sinto-me presenteada, agraciada, espantada, agradecida. O presente suspenso, como as raízes da Samaúma subindo ao céu. Sua pele de dragão ancestral, grossa e seca, com marcas que lembram olhos. Abracei uma de suas imensas raízes e senti o chão amolecer, e a árvore em movimento, feito lenta cobra”.

Outras muitas memórias guardo de viagens astrais na floresta. Durante uma cerimônia, com a qual passamos a virada de ano, o pajé parou para conversar comigo. Disse que ele também toma Uni “pra se tremer todinho”. E, quando treme, assume firmeza e diz à medicina: “estou tomando você é pra aprender a ser um filho melhor, pra te agradecer, pra fazer as coisas certo. Então, me ensina”.

O rapé também é usado como medicina — uma mistura de cinzas de árvore (normalmente, Tsunu) e tabaco seco ao sol. Toma-se rapé “para o pensamento se mover, começar a crescer”. O kapun, veneno de sapo, é usado para limpar o organismo, fortalecer a imunidade e criar proteção. Às 5 horas da manhã, como indica a tradição Yawanawa, estávamos diante do rio, em jejum, preparando a aplicação. Tomei mais ou menos dois litros de água e caiçuma de mandioca. O homem responsável pela aplicação havia trazido o sapo da selva. Com a brasa na ponta de um galho, fez cinco feridas superficiais na minha perna (homens recebem no braço). Raspou a pele do sapo com um pedaço de madeira, e aplicou seu veneno sobre minha pele. O efeito esperado é algo parecido com tornar-se sapo e virar os órgãos pelo avesso. Meu rosto e minha garganta incharam — devir-sapo em corpo físico. E, num sufoco que desespera as entranhas, vomitei litros dos confins do estômago. A tradição indica repetir a dose três dias consecutivos.

A sananga, enfim, é o veneno de uma tuberculosa, usado como colírio. Causa uma ardência difícil de suportar. O desafio é controlar as reações e relaxar os músculos faciais, ao reverso do espontâneo. Passando a ardência, vêm a calma e a clareza. Nervos da face e da mente reiniciados. A visão se limpa — física e metafísica. A sananga é usada tanto antes da caça, para apurar a mira, como antes de cerimônias de Ayahuasca, para abrir a miração.

A vida espiritual na aldeia recebe atenção particular e trabalho intenso. A produção de Uni toma no mínimo dois ou três dias de trabalho. Acompanhei, um dia, dois rapazes na missão de trazer os componentes. Como ainda não havia produção na própria aldeia, subimos o rio por duas horas de barco para buscar em outras aldeias. Um dos rapazes desceu em uma aldeia para buscar Kawá, a folha, Chacrona, e segui com o outro a outra aldeia para buscar o Uni, o cipó, jagube. Lá, o cipó estava todo trepado numa goiabeira. Foram horas e horas de facão e puxando com força para arrancar, entre nuvens de mosquitos, calor intenso, eventual chuva de formigas, um ninho de cupim que ele arrancou com as mãos. A princípio, eu pretendia e tentei ajudar, fiz o que pude até à exaustão — mas foi pouco. Minha energia esgotou-se rápido e concentrei-me em lidar com as adversidades físicas. Ele, com bruta força e resistência, recusando comida e água até terminar, passou horas entregue a um trabalho que não posso descrever senão como devocional. Depois, cortou o cipó em pedaços menores, com o facão, e os embrulhamos em dois grandes volumes que carregamos ao barco. Em paralelo, a colheita da Kawá exige paciência e esmero para cortar, uma a uma, as folhas, posteriormente selecionadas, novamente uma por uma. Fizemos a viagem de regresso à aldeia ao cair da noite, iluminando o rio com lanternas. Lua quase cheia. No dia seguinte, muitos braços carregaram vastas quantidades de água e de madeira (e cortaram lenha, outra vez de facão) que permitiram cozinhar o chá durante horas (oito, dez, doze horas de cozimento).

Penso na cidade abrindo garrafas plásticas de Ayahuasca em cerimônias para servi-la, já pronta. Quão difícil é dimensionar o esforço ali contido. Penso na minha própria incapacidade anterior de entender quanto de trabalho e amor, na forma prática da dedicação, são entregues para que eu pudesse acessar a medicina sem dificuldade. Penso nas fetichizações, negativas e positivas — índios como preguiçosos; índios como puros místicos. Penso nas imagens míticas do mundo indígena, criadas pelo mundo branco, que sustentam dogmas, fantasias e performances raramente similares às práticas indígenas.

Cipó Uni (nos cortes, veem-se patas de onça)
Feitio de Uni na aldeia

A língua Yawanawa, do tronco linguístico Pano, contém embutido o fluxo de transformação, e a natureza da natureza. “Toná” significa “árvore muito forte”; “Tonande” significa “tornar-se uma árvore forte”. “Yorainde” significa “transformar-se em gente, em ser humano”. “Kerane”, “que vem transformando”. “Yamẽ” quer dizer noite, mulher, morte, entre outros sentidos. Segundo sua cultura, o primeiro movimento da criação foi um vento; “um vento que começa a soprar, girar”: “xinã shuvi”, o pensamento gerado, o surgimento do pensamento, a criação da vida. “Yuve” é o espírito da sabedoria, relacionado à Jiboia e à Sucuri; também designa um sábio, pessoa com poder da palavra. “Yuve pae washumã” quer dizer “fazer da força algo positivo; trazer da força o espírito da cura; torná-la uma coisa de poder”. “Haux” tem intraduzível volume de sentidos, entre eles uma saudação, e “que venha a cura”.

A natureza é seu lastro, físico e metafísico. Por outro lado, estão infectados pela cultura de irresponsabilidade. Não têm destino para o lixo, que queimam ou amontoam na cidade mais próxima. Nem o resíduo orgânico é reabsorvido; vai com o resto. Há também lixo espalhado em algumas partes da aldeia (papeis de bala, embalagens). O sabão das louças, roupas e corpos desce diretamente ao rio. Vivem à base de gasolina e de diesel para os barcos motorizados e para o gerador de eletricidade (que, instalado há pouco tempo, lhes permite assistir jogos do flamengo e ouvir axé ou gospel em caixas de som).

Romper a romantização foi duro. Eu sabia que isso seria parte da experiência, e, assim mesmo, no fundo desejava secretamente o romance. Creio que, para esse processo, quanto mais dolorido, mais necessário. Como disse o filósofo esloveno Slavoj Žižek, a atitude mais antirracista que se pode ter é aceitar que outros povos possam ser tão demoníacos como nós. A imagem de um mundo indígena puro, selvagem, em que tudo é nu e natural, é uma fetichização simétrica ao racismo — fetiche positivo, fetiche negativo, variações da objetificação. Geni Ñunez, da etnia Guarani, psicóloga, capturou um ponto crítico: o fetiche racial positivo vem da insaciedade branca, da frustração de não poder ter tudo — os privilégios da branquitude, mais aquilo que avalia ou imagina como bom na experiência não branca. Em oposição à experiência frenética da urbe capitalista, a imagem de um mundo indígena mágico e liberto é sedutora, e enganosa. O mundo indígena é positivo e negativo, ambíguo, vivo, histórico, complexo, multifacetado, real.

A relação dos Yawanawa com o mundo branco é intricada e tensa, embora hoje estável e pacífica. Nos anos 70, chegaram a contar uma população tão reduzida que não constaram no censo brasileiro de povos indígenas vivos. Todos têm um nome Yawanawa e outro português — identidade dupla ou bifurcada? No rio, tomam banho vestindo roupas. Sob uma colonização interminável, tendo sido conquistados por portugueses, escravizados por seringalistas, evangelizados por missionários, e rivalizados pelo Estado em seu direito territorial, confrontam-se, hoje, com uma lei que os oprime e os protege, enquanto reconstroem e revigoram sua identidade própria.

A ambiguidade de benefício e violência estatal se manifesta em diferentes esferas. Comumente ignorados pelo ou excluídos do Estado monocultural, foi por tomar conhecimento do direito à demarcação do território que conquistaram o seu. (O ancião da aldeia advertiu a Ratinho, antigo proprietário: “o Rio Gregório está cheio de queixada, e ela não se dá bem com Rato, não!”). Foi por conhecimento da lei Maria da Penha que os casamentos forçados hoje tendem a zero. O Estado negligencia a diversidade, mas também lhe serve. E a contamina, particularmente ali onde previamente destruiu os sistemas nativos. A saúde indígena (o conhecimento das plantas medicinais e das curas tradicionais) sofreu um apagamento quase total; enquanto se reergue, o sistema de saúde pública mal alcança as aldeias. Não podem contar, para saúde, nem consigo, nem com o governo.

A educação tradicional indígena, similarmente, vem sendo suplantada pela educação ocidental. O governo, que não apoiou a construção da escola (uma pequena maloca de madeira erguida no meio da aldeia), financia a contratação temporária de dois/duas professores/as, renovada (ou não) a cada ano. A escola é uma mímese precária da escola na cidade: três ou quatro estudantes comparecem, entre mais de vinte matrículas. A cena da chamada é uma caricatura melancólica; fiasco em forma de protocolo. Em disciplinas divididas, a professora reproduz a (falta de) didática convencional. Lê longos textos em voz alta, dá discursos motivacionais aos jovens, compartilhando a fidelidade e a fé na (dita) educação como propulsora da evolução do sujeito e da sociedade, e implicitamente ignorando as práticas propriamente indígenas como práticas educativas.

Tive a oportunidade de dar algumas aulas para o pequeno grupo de estudantes. A professora ficava feliz sempre que eu me dispunha; cedia o espaço de boa vontade, e desfrutávamos da troca. Ensinei sociologia, antropologia, "epistemologia descolonial", em termos adaptados. O grupo ficava efusivo com a novidade das perspectivas e com a oportunidade de manifestar suas próprias opiniões e análises como parte do processo educativo. Fora da sala de aula, a professora me procurava para observações e dicas relacionadas a educação e pedagogia; os e as estudantes me procuravam com ou sem motivo, trocávamos conhecimentos, ideias, músicas no violão. O ancião que lecionava idioma Yawanawa à geração jovem também me agradeceu pelo que pude compartilhar sobre didática, ensino de idiomas e brincadeiras educativas. Sem orgulho, com impressionante abertura e confiança, recebem ajudas de coração e braços abertos, mesmo vindo de pessoas brancas, Ruwenawá, que historicamente os massacraram. Mais que a abertura a receber, muitas pessoas também manifestaram desejo de ter aulas de inglês, para melhor comunicarem-se com estrangeiros/as que visitam a aldeia durante vivências. (A extrema elasticidade do cotidiano e a dispersão imprevisível das pessoas me desafiaram a ponto de não conseguir realizar esse projeto.)

A equipe docente da aldeia é formada pela faculdade convencional de pedagogia, na cidade, assim como o jovem cacique formou-se na faculdade convencional de administração. Reproduzem-se os sistemas de conhecimento/sociedade dominantes, instalados na aldeia como suposto suporte. Rupturas buscando regenerar-se não conforme o corpo perdido, mas segundo o agente externo que as provocou. Ao mesmo tempo, recriando a própria tradição, idioma e herança, após profunda e forçada desterritorialização.

É labiríntico entender. Tudo parece escorregar pela tangente.

Também suas relações pessoais internas. São uma comunidade, todos por todos, uns contra os outros. Uma pessoa diz que não se pode confiar em outra; uma terceira diz que não confia na primeira. Segundo diferentes versões, o líder vai desmatar, ou já desmatou, ou já estava desmatada uma terra de quatro hectares para criar bois, destinados a suprir o consumo de carne da aldeia, ou para criar vacas, para obter leite. Um senhor me disse que era pajé, outros deram risada ao desmentir. Entre evangélicos e xamânicos, dividem-se sem se opor. Até mesmo quanto ao significado de palavras da língua Yawanawa (falada pelos mais velhos, compreendida pelos mais jovens) diferentes pessoas podem oferecer traduções diferentes.

O ancião mais respeitado da aldeia, principal pajé, realiza trabalhos de cura, espirituais e físicas, e é um mestre das tradições, da cultura, e da língua Yawanawa. Certa noite, por exemplo, esteve por três horas trabalhando, sob a força do Uni, em rezo para um bebê que vinha tendo problemas de sono. Rituais semelhantes deram-se em outras ocasiões, onde a concentração nos rezos entoados é incessante, hipnótica. O pajé sentado na rede, com a pouca luz de uma vela, ou na escuridão total. Sua voz preenche todo o escuro, entoando e invocando espíritos da natureza, direcionando-os à cura, através de cantos e rezas em língua Yawanawa, recebidos durante suas dietas. Algumas outras pessoas acompanhando o trabalho; atmosfera séria, leve, limpa, familiar. O pajé é desafiado pelo álcool, quando na cidade.

Uma pessoa me traduziu uma música explicando tratar-se de saudade, “amor pela presença, que os humanos devem ser livres na natureza, como pássaros”; outro, sobre a mesma música, disse se tratar de um mito sobre um jacaré que servia de ponte entre duas aldeias, até que afundou de propósito, afogando quem carregava. Ao ouvir meu dilema, um terceiro me confirmou que ambas as versões eram corretas. Ouso concluir que interpretações, lá, têm estatuto de significado. Não deixa de ser legítimo: um hábito diferente do nosso, de separar radicalmente significados literais e sentidos adquiridos. Talvez esse seja um caminho para compreender a presença relativamente comum da “mentira”; lá, também ela é tornada relativa.

Além e aquém do bem e do mal: sua moral não é como a minha. Como habitar este lugar? É, afinal, mais contíguo à natureza; é como na floresta: flores divinas, insetos peçonhentos, aromas celestiais e putrefação, animais belos e ferozes, encanto e perigo, luz e sombra íntimas, vida e morte. Índios me parecem floresta em forma de gente.

Tronco seco e folhas verdes: mistura de morte e vida

Como na natureza, há regras, mas não é simples encontrá-las. A lógica vacila. Uma mente que busca analisar, interpretar, prever (como a típica mente branca e “moderna”), está dada ao fracasso, e tanto mais se frustra quanto mais insiste. Compreendi meu hábito cognitivo quase obsessivo de classificar tudo, a cada instante, como bom ou mau. Índios são meandros, andam pelo canto, mudam de ideia ou mudam as ideias de um a outro instante, enigmáticos, mestres de encruzilhadas. Alguém de lá, ao me ouvir descrever essa impressão, respondeu-me que sim, é assim, e que “esse é o movimento da caça de veado.” Corpo e mente ambíguos, transmutantes. Estar é também improvisar o jeito de lidar com esse outro código, com esses limbos sobrepostos. Somos uma espécie, mas variamos em substância. Diversos modos de percepção e de existência, outra e a mesma humanidade.

Em um dos meus últimos dias na aldeia, noite de cerimônia, o pajé veio e puxou conversa. Muitas vezes conversamos durante aquele mês — escutei dele inúmeras histórias, mitos, cantos; recebi dele aulas de língua, cultura e espiritualidade Yawanawa. Sempre questionei o que me parecia questionável: mitos que degradam a mulher, desigualdades, injustiças. E conversávamos. Nessa noite, em cerimônia, ele me disse: “eu gosto do seu jeito. Gosto que você questiona quando não aceita. Na espiritualidade também é assim. Tem que ser assim”.

Acredito que seja tempo de misturar culturas, com sinceridade, paciência, humildade e doçura.

No tempo que passei na aldeia, vi vida e sabedoria profundas; conhecimentos da terra e do céu, harmonias da arte, dos sons, do trabalho; disciplina, comunidade, respeito. Vi também uma sociedade tão estranha e injusta como aquela de onde vim, com desigualdades e contradições, problemas e conflitos, complexidades sociais diversas.

Em outra noite de cerimônia, um dos filhos do ancião, vinte e um anos de idade, contou-me a história de seu povo. Guerras contra outros povos, conflitos, resistência, aprendizado, regeneração. E disse, concluindo: “Eu ainda estou aprendendo pra um dia saber o que é ser um índio. E ainda vai demorar muito tempo”.

Eu também estou aprendendo a ser quem sou.

Quero aprender com e entre muitas humanidades.

Agradeço pela oportunidade e privilégio de haver conhecido a floresta e o povo Yawanawa. Sentir na pele, olhar seus olhos, preto profundo de uma vida com raízes antigas a perder de vista. Outro lugar de existir, outra substância, natural e humana, divina e animal. Guardam preciosíssimos conhecimentos ancestrais. Amor direto, tácito e profundo pela natureza e por tudo o que existe.

Para além, sei que havia muito, particularmente de magia e segredos espirituais, que não vi, por despreparo do olhar e do corpo. E relatei aqui somente meu ponto de vista — sujeito à distorção e ao erro (como é típico dos pontos de vista).

Haux haux!

Digressão teórica em três intersecções

Li em paralelo, enquanto estava na aldeia, os livros “A imortalidade”, do escritor tcheco Milan Kundera, e “Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo”, da psicanalista brasileira Suely Rolnik; curiosamente, ambos se encontravam nos temas, como se conversassem. Dando crédito à insinuação, embarquei nos cruzamentos para ler meu contexto — a aldeia. Três temas foram pontos de intersecção: 1) O rosto, 2) A empresa doméstico-matrimonial & o complexo esposa-e-amante, 3) Ambiguidade.

1) O rosto

“ — Você me conhece pelo meu rosto, me conhece como rosto, e nunca me conheceu de outro modo. Assim não pode ter-lhe ocorrido a ideia de que meu rosto não fosse eu.

Paul respondeu com a solicitude paciente de um velho médico:

— Como você pode pretender não ser seu rosto? O que existe atrás do seu rosto?”

Primeiro ponto de intersecção: o rosto, a existência do rosto-máscara, separada da essência, máscara atrás da qual não há nada, senão uma fábrica de máscaras. O rosto é máscara também ali, na natureza, não há pureza, toda ela está vestida de corpos, os índios também se vestem, criam modelos de si, tão melindrosos ou enganosos como os nossos, se é que se pode comparar; se sim, talvez tenham rostos mais dinâmicos, mais versáteis, camaleônicos que os nossos — refletidos nas narrativas que se atravessam, em fazer (a)parecer o que não há; tornando a mentira aberta quase legítima, encruzilhadas de Exu por todos os cantos. O tema recorda-me, ainda, o escafandro de que fala a cabala judaica: é preciso criar um rosto para entrar no mundo espiritual. Nossa face comum é precária e disforme.

Agnès, personagem de Kundera, reflete: “uma vez despachados para o mundo tal qual somos, primeiro temos que nos identificar com esse jogo de dados, com esse acidente organizado pelo computador divino: deixar de nos espantarmos precisamente que isso (essa coisa que nos confronta no espelho) seja nosso eu”.

Suely Rolnik considera a máscara como essencial à realidade, pois uma intensidade — entendida (a partir do filósofo Deleuze) como base da sensibilidade, unidade mínima do real — sempre busca formar uma máscara para se apresentar. “As intensidades em si mesmas não têm forma nem substância, a não ser através de sua afetuação em certas matérias cujo resultado é uma máscara; ou seja, intensidades em si mesmas não existem: estão sempre efetuadas em máscaras — compostas, em composição ou em decomposição”. Inversamente, as máscaras criam e efetivam intensidades.

Uma intensidade necessita “simular-se”, assumir um rosto, para tornar-se realidade em prática. Assumir um rosto é territorializar-se. Em que consiste a demarcação territorial indígena, tomada nesse sentido, paralela ao corpo físico da Terra? São as linhas de sua subjetividade que lhes dão consistência de existir e de resistir; é seu modo de viver o espaço usando sua própria tradição, suas próprias máscaras; talvez uma condição de possibilidade anterior à demarcação territorial física.

De outro lado, retornando a Rolnik, há uma coragem fértil em sustentar a dissolução do rosto — sentir a máscara desterritorializada, ver o rosto revelar-se máscara — e habitar o lugar onde máscaras são forjadas; “descolar”, acolher os movimentos do afeto. Os afetos transitam através de máscaras. É no próprio artifício que residiria alguma “natureza humana”, se é que cabe pensá-lo: não seria, então, uma natureza que varia, mas a natureza enquanto pura variação. “Não há natureza pura, só pura diferença”.

Agnès continua a provocar. “ — Imagine que você tenha vivido num mundo em que não existissem espelhos. Você teria sonhado com seu rosto, o teria imaginado como uma espécie de reflexo exterior daquilo que se encontra em você. E depois, suponha que com quarenta anos tenham lhe estendido um espelho. Imagine seu espanto. Teria visto um rosto totalmente estranho. E compreenderia nitidamente aquilo que recusa a admitir: seu rosto não é você.”

Os índios parecem tê-lo mais claro que os brancos: rostos abertamente metamórficos, tanto xamânicos e perspectivistas como calejados pela história de maus encontros, resistência e regeneração; atualização como condição de sobrevivência.

Rolnik, em paralelo, percorre diversas possibilidades de transformação de uma “noivinha” cuja máscara nupcial fracassa — essa noivinha pode fracassar e “grudar” na máscara falida, como pode “descolar”, deixar-se boiar no vazio. Acompanhando-a, Rolnik descobre que “por trás da máscara não há rosto algum, um suposto rosto verdadeiro, autêntico, originário — em suma, um rosto real que estaria oculto (…). Nada disso: o que descobrimos com ela — só que neste caso não mais através de olho-do-visível — são movimentos permanentes e imperceptíveis de criação de outras máscaras. Por isso, podemos dizer que a máscara (o artifício) é a realidade nela mesma: não há nada que seja 'verdadeiro', no sentido de autêntico, originário — nem em cima, nem em baixo, nem atrás, nem no fundo da máscara. Nem em lugar algum. (…) A única pergunta que caberia é se os afetos estão ou não podendo passar; e como”.

Em vez de identidades, ensaios de si, rabiscos de formas, formulação de mecanismos de expressão, engendramento de máquinas que dão passagem a sensações infinitesimais. Mundos sociais são atravessamentos da atividade do desejo. Perpendiculares à divisão entre individual, grupal, pré-individual e/ou de massa, as máscaras são transubjetivas. O desejo produz o real social — e não há real que não seja social. A humanidade, desse ponto de vista, é variação e multiplicação de máscaras. Aquém das macroidentidades de brancos, índios, mães, operários, caciques, aquém do corpo e das funções sociais, uma indefinição de base, pequenos devires, estratégias de desejo, microinvenções da própria natureza em dado momento, pequenas improvisações de identidades, instauração de linhas, de teias de afeto, afetos confeccionando mundos sociais.

“Se não estivéssemos convencidos de que nosso rosto expressa nosso eu”, reflete Agnès, “se não tivéssemos a ilusão primeira e fundamental, não teríamos podido continuar a viver, ou pelo menos levar a vida a sério. E não seria ainda suficiente nos identificarmos com nós mesmos, precisaríamos de uma identificação apaixonada com a vida e com a morte. Pois é graças a essa única condição que não aparecemos a nossos próprios olhos como uma simples variante do protótipo humano, mas como seres dotados de uma essência própria e intransferível”.

Máscaras se fabricam e se decompõem. “As máscaras — gestos, jeitos e trejeitos, procedimentos, figuras, expressões de rosto, palavras… — tornam-se obsoletas com uma rapidez incrível”, diz Rolnik. A subjetividade é mutável, pois é tal o movimento natural dos afetos, dos desejos, da vida e das formas. Ideias que vêm como asteróides a chocar-se contra o caminhão da história branca universal e determinista.

Afetos da sociedade branca querem subsumir a máscara num grande rosto universal; esquecer ou colonizar a variação. A sociedade indígena confecciona e reforma máscaras a todo vapor como resistência, condição de autopreservação, re-instauração de um mundo próprio sob contínua desterritorialização forçada. A dinâmica colonizador-colonizado, opressor-oprimido, senhor-escravo precisa ser transformada tanto na macro como na micropolítica. Venham de onde seja, indo aonde vão, trata-se sempre de canais de intensidades, estratégias para dar passagem a afetos, subjetividades moldadas e cambiantes. Para mudar políticas é preciso mudar os afetos e a sensibilidade; descascar-se. Navegar no infinitesimal tecer e dissolver dos rostos, dos territórios; produzir novas máscaras, usar outros tecidos, mudar de costura.

Agnès prossegue: “ — Lembro-me, isso deve ter acontecido no fim de minha infância: de tanto me olhar no espelho, acabei chegando à conclusão de que o que eu via era eu. Tenho uma vaga lembrança dessa época, mas sei que descobrir meu eu deve ter sido inebriante. Mais tarde, porém, chega o momento em que nos olhamos no espelho e dizemos: será que sou eu mesmo? E por quê? Por que devo ser solidário com isso ai? Que me importa esse rosto? E a partir daí tudo começa a desmontar.”

2- A empresa doméstico-matrimonial e o complexo esposa-e-amante

“Se os escritores do século XIX gostavam de terminar seus romances com casamentos, não era para proteger a história de amor da monotonia matrimonial. Não, era para protegê-la do coito. As grandes histórias de amor europeias se desenrolam num espaço fora do coito (…). Em O Idiota, Dostoievski deixou Nastassia Philippovna dormir com o primeiro comerciante que apareceu, mas quando chegou a vez da paixão verdadeira, isto é, quando Nastassia se viu entre o príncipe Michkine e Rogojine, seus sexos se dissolveram em três grandes corações como pedaços de açúcar em três xícaras de chá.”

Segunda intersecção: o modelo de família explicitamente fracassado, mas resistente em seu orgulho; a traição como parte constitutiva inerente do sistema matrimonial; o teatro que sustenta a ordem. O cenário evoca a relação tradição-traição, apontada pelo rabino Nilton Bonder como uma dialética inevitável, e mesmo saudável quando tomada filosoficamente ou em termos de religião: trair é transgredir, romper com a moral vigente, abandonar o rosto, atualizar a tradição, desterritorializar e reterritorializar. Tensão ambígua, perigosa e fecunda.

A hegemonia da empresa doméstico-matrimonial é comum aos mundos branco e indígena: imperam o casamento heterossexual, a divisão de trabalho por gênero, a subvalorização do trabalho da mulher, a assimetria nas possibilidades (informais, mas normais) de traição, sempre privilegiando a liberdade masculina e a supressão ou distorção do desejo feminino. As relações com amantes são mantidas ocultas e marginais, embora não sejam excepcionais. (Numa transição histórica recente no mundo Yawanawa, sua sociedade poligínica tornou-se monogâmica, com complexo esposa-e-amante). A mulher dedica-se ao lar e à economia emocional (inclusive quando eram várias mulheres em torno de um homem). O homem dedica-se à política, à economia material. É recente a entrada de mulheres Yawanawa em posições de liderança, bem como no caminho espiritual.

Rolnik descreve as duas personagens: “Ele, na rua, compete com outros machos, batalhando pelo reconhecimento, a credibilidade, o prestígio — o poder — para ele e para os filhos. Aliás, é também na rua que ele encontra e convive com suas amantes. Ele tem que ‘vencer’, custe o que custar. Ela, por sua vez, fica em casa, administrando a vida daquele que tem que vencer. Ela cuida das coisas e dos sentimentos da família, mesmo quando trabalha fora. É responsável pela aparência de todos”.

Enquanto Rolnik analisa a empresa e o complexo, Milan Kundera continua a narrá-los. “A cama de casal: o altar do casamento; e quem diz altar também diz sacrifício. É lá que se sacrificam mutuamente: todos dois têm dificuldade de dormir e a respiração de um acorda o outro; cada um deles dirige-se para a beirada da cama, deixando no meio um grande vazio; um finge dormir, na esperança de permitir que o outro durma, para que possa adormecer virando e revirando-se sem medo de incomodá-lo. Infelizmente, o outro não poderá aproveitar isso, estando também ocupado (por razões idênticas) em simular o sono, evitando mexer-se. Não conseguir dormir e proibir-se de se mexer: a cama de casal”.

Modos de vida e políticas de subjetivação induzem e direcionam linhas de desejo. Agnès tenta desvencilhar-se delas, esforçando-se por desterriorializar-se, mudar de máscara. Casada, mas sem convicção, é confrontada por uma interrogação cruel de um visitante estrangeiro:

“ — Numa próxima vida vocês querem continuar juntos ou não querem se encontrar?

(É curioso [pensa o visitante]: se bem que disponha de todas as informações a respeito deles, a psicologia terrestre continua incompreensível para ele, a noção do amor desconhecida; portanto não pode suspeitar das dificuldades em que os coloca com sua pergunta direta e prática, formulada com a melhor das intenções.) Agnès reúne todas as suas forças e responde com a voz firme:

— Preferimos não nos encontrar mais.

E é como se ela batesse a porta diante da ilusão do amor”.

Em Rolnik, outra anedota:

“Seu olhar vai abandonando o amigo, também músico — porém medíocre — para se fixar, sedutoramente, no olhar da esposa; e ela, como numa dança, o acompanha: seu olhar vai esquecendo o marido e se concentrando, cada vez mais fascinado, naquele homem fino e misterioso que acaba de violar o teatro de sua vida doméstico-matrimonial.”

O amor, diz Rolnik, assusta porque é desterritorializante por natureza.

(Nota: não pretendo falar contra o amor ou medir seu grau de presença, mas trazer à vista mecanismos sociais comuns, modelos familiares em que frequentemente o amor pesa menos do que a forma, adequa-se a um molde e escorre pelos cantos.)

3- Ambiguidade

“Abrigar-se com o escudo da infância era o disfarce de toda sua vida. Seu disfarce, mas também sua natureza, porque desde criança brincava de criança. Estava sempre um pouco apaixonada por Clemens Brentano, seu irmão mais velho, e sentava-se com alegria no seu colo. Então (tinha na época quatorze anos) já estava na mesma situação de saborear a condição três vezes ambígua de criança, de irmã e de mulher sedenta de amor. É possível expulsar uma criança de seu colo? Nem Goethe seria capaz de fazê-lo.”

Terceira intersecção: ambiguidade.

Suely Rolnik diz que a ambiguidade é congênita da segunda linha dos fluxos do desejo. São três: 1) Primeira linha: desterritorialização (decadência das máscaras, vazio); 2) Segunda linha: simulação (ensaios de intensidades, investimento de desejo); 3) Terceira linha: territorialização (assunção de rosto, representação, investimento de interesse). A segunda linha, de simulação, realiza movimentos dupla-face, em direção às outras duas linhas; as três ocorrem simultaneamente. A ambiguidade é assim intrínseca à simulação. A ambiguidade gera angústia, e o combate contra ela define as estratégias do desejo. Desejo em todo o espectro da produção do real — do qual Milan Kundera separa o fio do erotismo e afirma: “Ouso afirmar que não existe erotismo autêntico sem a arte da ambiguidade; quanto mais poderosa é a ambiguidade, mais viva é a excitação”.

A ambiguidade das situações que justamente por isso são ainda mais eróticas provavelmente passam menos visíveis para mim dentro da sociedade em que cresci, e mais nítidas quando a vejo em outro lugar. Os índios fazem brincadeiras que reúnem toda a aldeia, e brincam através de frutas, símbolos, negociações. Na brincadeira da cana, por exemplo, mulheres têm que tomar a cana da mão dos homens, depois os homens das mulheres, depois um “cabo de guerra” em que mulheres contra homens disputam um longo pedaço de cana. As mulheres saltam sobre os homens, penduram-se, derrubam-nos com o peso de seus corpos, agarram e os imobilizam no solo. Entreguei-me à brincadeira e pude deixar sair a violência como há tempo não tinha ocasião de fazer. As crianças brincam similarmente entre elas. De onde venho, adultos teriam interpelado com censura e pacifismo. Adolescentes, adultos, anciões, anciãs, pajés brincam misturados num espírito de coesão social hiperbólico. Gente nas arquibancadas torce e grita. Dão risada, desafiam-se, cantam. Ao mesmo tempo, há uma clara disputa pelo falo, um extravasamento de impulsos sexuais pela via da luta, e um rio discreto de toques e insinuações sensuais (que não identifiquei com meu “olho-do-visível”, mas sobre o qual escutei comentários). No fim, forma-se uma fila que vai circulando e agregando, até juntar todas as pessoas, que marcham cantando e dançando em conjunto e brindam o momento com um mergulho coletivo no rio.

Ambiguidade, característica-base da minha experiência na aldeia. Ambiguidade de sentimentos, ambiguidade nos sinais que me eram transmitidos. Ambiguidade em cada palavra enunciada, em cada tradução multiplicada, em cada cena vista (atrás da qual há outras não vistas, que, lá, se estuda para ver). Mistura extrema: mistura como a própria substância, luz e sombra entrando uma na outra. É provável que meu mundo seja tão ambíguo quanto aquele; tão ambíguo quanto um espelho.

* Sou socióloga e viajante, em doses similares e um pouco misturadas. Fui à aldeia por curiosidade e busca ligadas à minha humanidade, sem pretensões científicas. Esse texto contempla minhas experiências e reflexões pessoais.

Mais sobre o povo Yawanawá:

YAWANAWAHÃU XINÃSU RAIÁ: Plano de vida Yawanawa. https://www.forest-trends.org/wp-content/uploads/2019/03/life-plan-yawanawa.pdf

YUKUNAHU MAHUHU AKESANAWAI YURA: Programa de formação de mediadores culturais em mudanças climáticas e gestão territorial povo Yawanawá.
https://www.forest-trends.org/wp-content/uploads/2019/05/Cultural-Mediators-Yawanawa.pdf

Costumes e Tradições do Povo Yawanawá. http://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/documentos/eventos/indigena/CostumesTradicoesYawanawa_REV2bx.pdf

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Noa Cykman
Noa Cykman

Written by Noa Cykman

Humana, socióloga, amiga das palavras e das utopias

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