Semente de mundo no escuro da terra
Recolhida e suspensa, a sociedade mundial vacila. Numa exceção inédita, pessoas em praticamente em todos os países são instruídas a permanecer em quarentena, mantendo isolamento físico, em casa. 2,8 bilhões de pessoas encontram-se reclusas. Ruas vazias, transporte parado, lojas fechadas, educação suspensa, produção freada, comércio mínimo. Na cidade, um silêncio incomum. É como descer da roda e observá-la a girar, cada vez mais lenta, e quase cessar.
Pausar a inércia traz à vista os critérios, mecanismos e ordem de prioridades que mantêm a vida convencional em movimento. No vazio que se abre, ou que se dá a ver (o mesmo vazio que permeia as inércias das rotinas; o vazio que se tenta ocultar sob a velocidade), alteram-se as condições da subjetividade e a perspectiva do olhar. É fácil, em situação de exceção e emergência, cair em ansiedade e medo. Mas pode ser, em vez disso, se dentro de condições que o permitam, a ocasião de refletir e repensar a dinâmica fundamental da vida; de redimensionar e reimaginar necessidades, prioridades, relações, para fermentar ideias desejáveis, como recomenda Naomi Klein, e vislumbrar alternativas de organização social e econômica — que já eram urgentes antes do vírus. O funcionamento e a experiência das estruturas atuais se contorcem. Como poderiam ser remodeladas a nosso favor? Se a escuridão subterrânea é essencial às sementes, o momento é oportuno para plantá-las.
Para Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga e historiadora, crises são momentos de desvelamento nos quais “a sociedade se desnuda de suas roupagens discursivas herdadas, anquilosadas, e vemos nossas seguranças caírem, para reconhecer o que não queríamos ver”. Entre as doenças mais tradicionais, que nos custa reconhecer e superar, estão: a cultura da destruição e a descartabilidade da vida (de alguns); a soberania do capital no mundo social; a ilusão individualista e a escassez de senso de comunidade; a destruição sistemática da natureza. Sobretudo os grupos política e economicamente poderosos cerram os olhos antes tais problemas, todavia também a inércia das vidas comuns pactua com as velhas formas. A experiência excepcional da quarentena pode contribuir para a compreensão dos desafios e a produção de transformações, inclusive a partir do nível micropolítico (das relações e ações pessoais e comunitárias), para o fortalecimento de alternativas que permitam a construção de sociedades equilibradas, justas e saudáveis, orientadas à preservação da vida e dos vínculos.
A pandemia toca no fundo da vida porque atravessa dimensões básicas da experiência como ser vivo, como humano e como espécie: a condição de nascer, viver, morrer; a saúde sob a chance da doença; a evidente, e nem sempre vista, condição de finitude. As epidemias são, nas palavras do filósofo Michel Foucault, “dramas temporários da morte multiplicada, da morte tornada iminente para todos”; a doença e a morte bruscamente invadindo a vida. Talvez por acometidas, ao mesmo tempo, pela mesma ameaça, como ocorre na pandemia, as pessoas se aproximem em sua condição humana, subitamente consciente e partilhada. Há efeitos políticos: até hoje, a exclusividade elitista do atendimento médico sempre deixou definhar os excluídos, sem absurdo; sob a pressão de uma pandemia que simultaneamente iguala todos os doentes, o acesso universal à saúde torna-se preocupação global, tornado campo comum. As condições precárias e instáveis do trabalho da população mais pobre precede em muito esta crise; a tensão aumentada desloca a perspectiva. A varredura do vírus intensifica e visibiliza, mais que produz, a miséria dos excluídos; aumenta o contraste, expondo a arbitrariedade da diferença entre humanos e humanos. A morte como ponto de referência.
Assim, no combate ao coronavírus, um objetivo comum reúne o mundo, e dá novo tônus ao laço social. A vida e a saúde chegam ao primeiro plano, e com elas, a percepção do coletivo. Gente saudável permanece em casa para preservar a saúde dos grupos de risco; jovens organizam-se e apoiam idosos/as em tarefas domésticas. Profissionais da saúde expõem-se ao risco numa forma quase devocional de trabalho. “Cresce um senso de responsabilidade coletiva em relação aos que não podem se proteger, aos que precisarão trabalhar, aos que estão em condições sanitárias desfavoráveis. […] o gesto de muitos de voluntariamente se isolar e evitar contato social não seria a quebra da sociabilidade, mas propriamente uma versão de solidariedade baseada numa vulnerabilidade comum”, diz o psicólogo Felipe Demetri. Uma “biopolítica de baixo”, em que a micropolítica ganha força e até mesmo pressiona o Estado a adotar medidas responsáveis.
E talvez pela primeira vez na história do capitalismo, a centralidade do trabalho, da produção e do próprio capital desloca-se, colocada em segundo plano. O mercado é obrigado a parar. Sua mão invisível lava-se com detergente, repetidamente, e não alcança controlar, superar ou contornar os efeitos do estado de emergência. Paralisada pela pressão da morte, o capitalismo neoliberal apela aos Estados para obter injeções diretas e massivas de capital, e mostra (como em todas as crises) sua fragilidade e inconsistência. Políticas sociais (isenção fiscal, suspensão de alugueis, auxílios financeiros etc.) e debates sobre acesso à saúde retornam às agendas de vários países. Ao mesmo tempo, a macropolítica (tantas vezes anencéfala, como no Brasil e nos EUA) dissolve-se em campos mais ou menos autônomos de pensamento e de ação, curvando-se à colaboração da população e a redes de conscientização e solidariedade.
Slavoj Zizek, filósofo, interroga se a crise causada pelo coronavírus não indica a necessidade urgente de uma reorganização da economia global, a um modelo que não se sujeite aos mecanismos de mercado. Cita o exemplo da catástrofe de Chernobyl, que serviu como limite final ao comunismo soviético. Bruno Cava, também filósofo, traz outros exemplos e argumenta pela potência disruptiva das crises: “É verdade que, em momentos de pandemia, dá-se uma desterritorialização generalizada, abrindo brechas no campo dos possíveis. Poderíamos lembrar como, na Baixa Idade Média, a Peste Negra precipitou a crise do feudalismo, a pandemia de influenza de 1918–20 criou oportunidades para a luta por um sistema público de saúde, e a de AIDS, nas décadas de 1980–90, uma inédita mobilização pelos direitos dos gays à vida e à saúde.”
Com a quarentena, podemos quase ver o mundo de fora. O que fazemos do tempo quando fora da agenda? Quem somos quando longe dos outros? Relativiza-se a necessidade: que tipo de comércio permanece aberto; qual pode esperar? Avistar o contorno de um modelo, de sociedade ou de si, é compreender seus limites e, portanto, avistar possibilidades que habitam além; regiões às quais geralmente se dá pouca ou nenhuma atenção (ou não se alcança vê-los, ou não se levam a sério). É certo que, às margens mais ou menos afastadas da sociedade global capitalista, inúmeras outras formas de vida e de organização social e econômica existem — antecederam-no, persistem, e muitas se (re)inventam. Outros jeitos de ser e sentir-se humano, outras formas de relacionar-se com humanos, com animais e com outros seres. Podemos ponderar e conceber, para depois da crise, pequenas mudanças na vida imediata, com relação a hábitos coletivos, à relação com a natureza e a vida, e à transição desde o sistema capitalista a outros sistemas de produção e consumo, que nos permitam autonomizar nossas necessidades mínima e progressivamente, inclusive durante a monstruosa recessão que vem.
A interdição do encontro marca a experiência da quarentena, e mostra, pelo contraste, a intensidade da relacionalidade e das trocas na vida. É como se a banheira ideológica do individualismo esvaziasse: vivíamos em comunidade e não sabíamos. O encontro com os outros, a presença física, o afeto, a voz e o abraço são tão presentes e fundamentais como as redes de produção e distribuição de alimentos, serviços e bens. A imagem do indivíduo autônomo e soberano, e o progressivo apagamento dos rostos das trocas e contatos humanos (cada vez mais digitais e automáticos) denota a desumanidade do sistema (não a inexistência dos rostos) e, subitamente levada ao paroxismo, a imagem do indivíduo autossuficiente se desfaz. Hoje, a rua, a feira, a praça, a praia, os muitos lugares do cotidiano parecem nostálgicos cenários de convívio social. Uma atividade banal como ir ao mercado tensiona quase ao limite a potência (feita visível pelo perigo e pela ausência) de encontrar-se com outro. Neste estranho presente, que é, sob alguns aspectos, menos estranho que toda a história que o precedeu, estar na rua, ver outra pessoa, e por ela ser visto, gera sentimentos (angústia, medo, cumplicidade, simpatia, curiosidade, receio, vergonha etc.) e é difícil passar indiferente. O contato virtual, por outro lado, revela sua duplicidade, salvando relações do isolamento absoluto, por um lado, e mostrando sua incapacidade de substituir o encontro real, por outro.
Outro efeito importante da pandemia é o brusco alívio do planeta. Ainda que seja um momento breve, a Terra respira enquanto cessam as indústrias e os transportes movidos por combustíveis fósseis, suspende-se a emissão de gás à atmosfera e a poluição do ar e das águas. Há décadas a humanidade corre rumo ao abismo, sem pausa, destruindo por onde passa. Pensando com os cientistas James Lovelock, Lynn Margulis e outros teóricos de Gaia, que consideram a Terra como um organismo vivo, seria possível até mesmo pensar na pandemia como a própria expressão e ação do planeta. Esses teóricos recusam a ideia de “ambientes” pré-existentes e separados das formas de vida — os organismos geram seus ambientes. Não há distância entre nós e o mundo. “A atmosfera somos nós”, resume o filósofo Bruno Latour. A Terra sofre de febre, dor e falta de ar. Não seríamos uma espécie de infecção viral?
Para Isabelle Stengers, a ocorrência de intensos fenômenos biológicos (incêndios, enchentes, pandemias) são a própria “intrusão de Gaia”, reação ao inconsequente desequilíbrio provocado pela humanidade (ocidental capitalista) ao longo dos últimos séculos. A pandemia atual nos recorda o que nunca se deveria perder de vista: a força soberana e determinante da natureza, sua capacidade inderrogável de provocar transformações de mundo. Pachakutec, para a tradição andina, é a promessa de retorno da ruptura e da saída a um tempo não linear, um novo começo para a humanidade, não pela primeira vez. Os Yanomami, povo indígena brasileiro, similarmente predisseram a “queda do céu”, fim do mundo como o conhecemos, não pela primeira vez. Diversas culturas vêem chegar um apocalipse — etimologicamente, a retirada de um véu, uma revelação, brusca reinvenção do mundo. A crise atual, a um tempo biológica, ecológica, econômica, social, subjetiva, política, é o fim de um fôlego. Exaustão do paradigma em que vivemos.
O capitalismo neoliberal não cessará por um golpe final e um ponto final; todo evento histórico é lento e gradual, decorrido desde bem antes a muito depois das datas e marcas que os ilustram. Trata-se, portanto, agora, de fermentar a transição, abandonando na medida do possível e cada vez mais os mecanismos do mercado tradicional, e integrando e fomentando outras formas possíveis. São inúmeras: modelos de economia solidária e circular, de gestão do Comum, de mútuo apoio comunitário, de trocas, de generosidade ritualizada, de moeda social e crédito popular multiplicam-se em economias diversas, de subsistência, de abundância, de dádiva, de oferenda. Como inspirações desde tradições antigas, podem-se mencionar o Potlatch, o Pasanaku, o Ayni. Potlatch é uma espécie de “guerra de presentes” em que diferentes tribos da Polinésia e da Melanésia trocam bens, serviços e simbologias, de forma agonística, conformando o cerne de seu sistema econômico e social, em ausência do sistema de compra e venda. Nas tradições andinas, a prática de Ayni é parte inerente da vida: sem ritualística, ayllus (conjuntos de famílias: comunidades) trocam sementes e alimentos em quantidades equivalentes, a cada visita ou ocasião de necessidade. O Pasanaku, também andino, é um sistema de crédito popular em que um grupo de confiança acumula em conjunto e sorteia rotativamente um/a participante para receber.
Entre os exemplos atuais, podemos mencionar o Banco de Tempo, o Armário Coletivo, as hortas comunitárias. O Banco de Tempo é um banco cuja moeda não é o dinheiro, mas o tempo. Uma hora de qualquer serviço ou produção ofertada é creditada em conta e pode ser usada para a compra de outros serviços ou produtos. O Armário Coletivo é um sistema de compartilhamento por bairro: um armário, cuidado por seus usuários, serve como redistribuidor de roupas, utensílios domésticos, livros etc. Cada pessoa deixa o que não lhe é útil no momento e leva o que encontrar desejável. As hortas comunitárias são terrenos tornados produtivos pela comunidade próxima: o trabalho coletivo gera hortaliças e alimentos disponíveis para o consumo por parte da própria comunidade. Nesses três exemplos, e em inúmeras outras experiências, operam-se trocas e circulam bens e serviços sem mediação do dinheiro, sem expropriação entre pessoas ou classes, e sem impactar o planeta.
As alternativas exigem recordar e restituir o parentesco e o cuidado entre as relações que compõem a vida — algo que a pandemia nos vem obrigando a fazer. O coronavírus não fará a revolução, mas abre espaço para que nós a continuemos. Para quem tem a possibilidade, convém fazer da quarentena tempo criativo, de (auto)estudo, de introspecção reflexiva, de atualização dos modos de estar no mundo. (Teremos que fazer isso juntos.)
Referências:
https://criticallegalthinking.com/2020/03/14/against-agamben-is-a-democratic-biopolitics-possible/
https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/zizek-ve-o-poder-subversivo-do-coronavirus/
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596989-o-coronavirus-e-os-filosofos
http://petdireito.ufsc.br/wp-content/uploads/2016/05/Foucalut-M.-Em-defesa-da-sociedade.pdf