Visita à Praia Grande de Cajaíba & sua história através de Seu Altamiro: Território caiçara em resistência

Noa Cykman
19 min readJan 17, 2025

Uma história que se reflete em outras mil neste Brasil

1 de novembro de 2024

Percorrendo pelo mar o caminho à Praia Grande da Cajaíba, a água turquesa circundava o barco em todas as direções, dando vez a verdejantes morros de mata atlântica em alguns momentos do horizonte. Alef e seu filho de 7 anos de idade — quinta e sexta gerações da família no local — nos transportaram da orla de Paraty-Mirim à Praia Grande de Cajaíba, na Reserva Ecológica da Juatinga, Paraty (RJ). Após uma boa meia hora de vento fresco no rosto, cavalgando no oceano, avistamos o destino. O deslumbramento é inevitável na travessia e na chegada. Na linha de encontro entre oceano e terra, o mar é transparente, as cores lembram sonhos e a longa extensão de areia respira vazia, silenciosa.

Alef e Cacaio, filhos de seu Altamiro, e a Praia Grande da Cajaíba ao fundo

Ao nos aproximarmos da orla, Adelino, irmão de Alef e mais nove, veio sorrindo, recebeu-nos e ajudou a descarregar. Pairava uma chuva fina quando desembarcamos naquele pequeno paraíso num fim de luz. Ainda embarcado, Alef retrocedeu com o barco o suficiente para, vindo em alta velocidade em direção à areia, aterrissá-lo em terra firme feito um barco de fórmula 1. Adelino nos convocou para ajudar na força-tarefa (ainda não óbvia aos olhos das duas leigas) de puxar o veículo desde a beira do mar até seu devido estacionamento, mais alto na areia. Um cais faz falta para a comunidade, e Alef começou a construção de um há alguns meses. A estrutura ganha forma lentamente, no tempo que permeia as mil atividades do caiçara: desde o transporte naval das crianças pra escola às 4:30 da manhã e de volta ao meio dia, passando pela hospedagem de visitantes, reuniões com órgãos públicos, organização comunitária e o cuidado das crianças junto à esposa, até a pesca — tradição da família. Coletamos os pertences que deixáramos apoiados sobre a mesa de madeira de um dos quiosques de sapê e subimos pela trilha do canto da praia para nos acomodar na vizinhança, guiadas por Alef e Adelino.

Por força do destino ou mistério dos encontros, uma reunião entre a comunidade e o ICMBio aconteceria na próxima manhã num dos três quiosques da praia, e Adelino nos convidou a participar. Seria a última de um ciclo de cinco encontros para elaboração de um Plano de Desenvolvimento Comunitário. A delicada e necessária interface entre a comunidade tradicional caiçara e uma instituição política estatal acendeu minha curiosidade. Imediatamente aceitei o convite e fiquei contente que, em pleno paraíso tropical, teria ainda a oportunidade de conhecer melhor a comunidade local e aprender de perto sobre sua luta de defesa do território — mais um dos tantos assediados pelo capital nesse país.

A disputa por terra e território

Seu Altamiro é patriarca da comunidade e guardião incansável da vida. Tem uma presença enérgica e os olhos da cor do mar. Reconheci-o logo pela face semelhante à dos filhos; ele me cumprimentou com um sorriso e um abraço um maior que o outro e, muito disponível, começou a contar sua história e a história do local. Seu Altamiro não teme se emocionar — por exemplo, marejou os olhos falando da situação de alguns de seus irmãos vivendo na cidade; “não têm um café pra servir”. No restante do tempo, passa o dia a rir e arrancar risadas.

O território caiçara percorre, com descontinuidades, o litoral do Rio de Janeiro ao Paraná. Dentro da APA do Cairuçu, conjunto de territórios em Paraty, estão demarcadas as terras indígenas Guarani de Araponga e de Paraty- Mirim. A região testemunhou a escravização do povo negro e indígena e a produção monocultural de cana e de café. Em resistência, formou-se o quilombo do Campinho da Independência na Praia Grande, que vive aí até hoje. Os territórios caiçara, indígena e quilombola mantêm relações de afeto e colaboração, segundo conta Seu Altamiro.

No entanto, as relações com a sociedade dominante são menos felizes. Menos de um século após a abolição da escravatura, desde a década de 50, repete-se outra vez o roteiro colonial. Gibrail Tannus Notari era engenheiro paulistano de uma família de grandes proprietários[i] e ficou conhecido como “o grileiro da caneta vermelha” por “correções” em documentos da Praia do Sono,[1] localidade que tentou dominar com “grosseira e irrefutável falsificação cartorial e atos de terrorismo contra os moradores” (VIANNA, 2008, p.73). Apesar de constar como acusado de grilagem de terras no Atlas Fundiário do Rio de Janeiro (1991), Gibrail era figura pública respeitada em Paraty.

“Você que inventou a tristeza… ora, tenha a fineza de desinventar”: (des)encontros com o Estado

Estávamos já no espaço da reunião, um dos quiosques da praia, e a equipe do ICMBio preparava o espaço pendurando nas paredes um mapa e alguns cartazes coloridos com diferentes tópicos — geração de renda, direitos fundamentais, infraestrutura, organização comunitária, responsabilidades e parcerias, e “o tempo das coisas”. Iolanda, filha de Dona Dica e dona do quiosque, deixara servida uma térmica de café, leite, frutas e biscoitos. Respeitando a temporalidade baiana, ficamos conversando informalmente durante algum tempo, sem pressa aparente. Ao dar início, enfim, os proponentes da reunião perguntaram até que horas o grupo gostaria de ir. Seu Altamiro respondeu prontamente, com sua típica jovialidade, “por mim, eu vou até raiar o dia amanhã de manhã.” Ficou combinado ir até, no máximo, às 15h, por conta das condições do mar para levar a equipe de volta ao continente.

Como numa aula magna, de 9h às 15h, atravessaram um panorama bastante amplo e complexo da história e atualidade da comunidade. Num paradoxo inevitável, suas maiores dificuldades foram trazidas pela dita-civilização colonial e se tentam resolver em diálogo com a mesma. Esse contato tem um longo histórico de fracasso e traição por parte da prefeitura de Paraty e de órgãos ambientais locais, frequentemente alinhadas aos interesses dos invasores dedicados à especulação imobiliária. O ICMBio, conforme me pareceu naquela ocasião, parece atuar como redutor de danos e mediador, usando uma abordagem participativa e trabalhando para traduzir as demandas da comunidade à linguagem do Estado e orientá-los na reivindicação de seus direitos.

A comunidade está disposta ao diálogo e à colaboração. Ao mesmo tempo, não deixa de apresentar frustração com a burocratização e as decisões externas impostas ao longo dos anos. Por exemplo, o Instituto Estadual de Florestas (IEF/RJ), responsável pela gestão da Unidade até 2008, criou uma relação bastante conflituosa com a comunidade. Em 2003, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) ordenou a derrubada de barracos à beira-mar que guardavam ferramentas de trabalho da pesca. Alegando uma proibição legal, queimaram-nos diante dos protestos e desespero de seus donos. Mais grave ainda, o próprio poder Judiciário da cidade tomou o partido dos grileiros invasores, ordenando duas decisões de reintegração de posse do local.

Reunião da comunidade com ICMBio

De outro lado, colaborações e parcerias com universidade têm sido férteis e trazido contribuições importantes ao território. Foi por uma dessas parcerias que Seu Altamiro substituiu a roça de coivara (com queimadas) por uma agrofloresta populada por 36 espécies, diferenciadas entre agrícolas, arbóreas, palmito e frutíferas.

Insistir na fé e na alegria

Seguimos acompanhando Seu Altamiro por mais dois dias e ele nos mostrava, cheio de energia, os recantos de sua terra e os seus meios de trabalho e subsistência. Ele nasceu na praia que é até hoje seu berço. Tem sangue caiçara, negro e Guarani. Viveu, durante toda a sua vida, os saberes da pesca de rede, da construção de canoas de madeira e casas de sapê e do feitio de farinha, trabalhos que aprendeu com seu avô. Conhece, portanto, o valor inestimável da vida simples na terra. A despeito dos sucessivos e severos ataques ao longo de quase um século, nega-se terminantemente a deixar seu lugar.

Perguntei a ele como enxerga essa luta para permanecer. “Ah, minha filha, agora o que eu penso, é: é para sempre. Os meus amigos, os meus netos, as minhas netas (…). Pra caçar e vir tudo para morar aqui. E [para] os meus amigos continuar aqui, que são vocês, pra vir acampar.” Seu Altamiro brinca que a Praia Grande da Cajaíba é sua só quando não estamos. Assim que chegamos de visita, “é nossa”. Condizente com sua visão de longo alcance, está plantando guapuruvus para que seus netos possam colher madeira para construírem suas canoas.

Quem são os invasores de terra no Brasil?

“O grileiro, quando ele chegou aqui, já tem muitos anos… Eu tinha uns 12 anos por aí já, quando ele chegou, dizendo que era tudo dono de tudo. (…) Só que ele aqui era o seguinte. Se ele comprava? Não comprava, não. Comprar é um dinheiro bom. Uma mixaria só, e ele disse que tudo era dele. Entendeu? Ó, ‘tudo é meu’. ‘Tudo é meu’. E mostrava tudo pros amigos dele, ‘tudo é meu’. Como é que é seu? Praia Grande da Cajaíba não tem morador? Eles falam que a Praia Grande da Cajaíba não tem morador. Tá bom? Ó, minha filha. Osso ruim de roer, entendeu?”

Na década de 70, famílias caiçara foram ameaçadas, enganadas e afrontadas por Gibrail Tannus, o recém-chegado e autointitulado proprietário. Muitas foram coagidas a vender a posse de suas terras por meio de expedientes desonestos e violentos, incluindo contratos obtusos e ofertas enganosas de “troca” por casa na cidade. Muitos moradores alegaram serem levados a assinar documentos que pensavam ser contratos de trabalho ou de reconhecimento como moradores da Praia, apenas para descobrir, mais tarde, que se tratavam contratos de comodato de terra reconhecendo Gibrail como proprietário, restando aos caiçaras apenas seu usufruto.

“Que surgiu um tal de comodato que ninguém sabia. Gibrail chegou aqui com uma latinha de bala doce, daquela que nós chupa, e chegou pra um homem bem velhinho que tinha uma terra aqui na praia e falou assim: — Aqui, eu trouxe um presente pra você meu velhinho. Uma latinha de bala pra chupar. E o velho nesse momento pegou a latinha de bala e foi chupar. Ele disse: — Agora você assina aqui como te dei a lata de bala. O velho disse: Mas eu não sei assinar. — Então bota o dedo. E Gibrail foi embora. Passado aí dois ou três meses Gibrail voltou e disse pro velho: — Ô velho, agora o senhor vai embora. — Eu, embora? Eu tô aqui desde a época do meu avô. — Não, olha aqui: você tem seu comodato. E por isso ele passou tudo por morador da Praia Grande. E o pessoal já foram embora. E ele não pôde tirar mais nós, nem Seu Altamiro.” (Altamiro. Registro oral em formato de áudio, 21 de maio de 2011)

Das 40 famílias que habitavam a Praia Grande da Cajaíba até 2004, apenas duas permanecem na terra hoje, em 2024, em resistência às pressões, ameaças[ii] e tramoias do invasor salafrário e seus capangas. Maria Elizabeth e Cristiano Tannus Notari são herdeiros de Gibrail e intensificaram a intimidação ao povo local através de processos jurídicos de reintegração de posse. As casas abandonadas pelas famílias caiçaras foram, ainda, demolidas, de forma a evitar o retorno dos que saíram.

“Mais que quarenta famílias. Só sobrou eu e Dona Dica. E eu tô lutando. Mas eu não tô achando ainda nenhuma brecha ainda, como é que vai ser pra eles voltarem, né? ‘Tio, como é que eu faço pra voltar?’, né? E eu tô abrindo meu jogo com todo mundo, como é que podemos trazer um morador?”

“Dividir para conquistar”, a máxima da dominação, continua operando. “A família foi assim, foi sentando o despejo de pouquinho. Ó, temos gente morando em Santos, temos gente morando no Rio Escuro do Batuba, temos gente morando na Ilha Grande, temos gente, não sei se mudou agora pra Angra, gente morando em Angra. A maioria tá no Pantanal de Paraty e Ilha das Cobras e Mangueiras [bairros periféricos e pobres]. E o outro, os todos, os mais velhos já se foram.”

A família Tannus disputa judicialmente 25% do território da Reserva Ecológica da Juatinga: a Fazenda Santa Maria (1.300ha), a qual inclui as praias do Sono e Ponta Negra, e a Fazenda da Praia Grande da Cajaíba (1.200ha). No ponto mais grave da investida de captura, em 2008, a população dessa última reduziu-se a oito pessoas. Foram, enfim, auxiliados por Lúcia Cavalieri, geógrafa da USP, para ir à defensoria pública no RJ. “Lá eu encontrei meu direito”, diz Altamiro, e expressa profunda gratidão e amizade por Lúcia. Desde então, seguem em briga judicial. Porém, minimamente amparados pela justiça, aumentou o fluxo dos que retornam à Praia e o número de nativos vem crescendo novamente, fruto da luta incansável das famílias de Seu Altamiro e de Dona Dica, resistentes no território, e da periclitante negociação com o Estado para sua regularização.

A região faz parte do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional atribuído ao município de Paraty em 1958. Atualmente o local é uma sobreposição de duas unidades de conservação: uma federal e outra estadual, cujas divergências ora servem para complicar, ora para aliviar as necessidades da população caiçara.

Seu Altamiro na casa de farinha
”Mãos de trabalhador” de Seu Altamiro

Na aliança para defender o território e o direito à vida plena de sua população, é importante lembrar que conceitos como propriedade privada não fizeram nunca parte do mundo caiçara, até chegarem pretensos proprietários. A regularização de títulos não faz parte da cultura caiçara a regularização de títulos e seria fundamental que qualquer negociação mediada pelo Estado reconhecesse este aspecto (RAIMUNDO, 2001: 77). O desencontro com a política de estado é notável.

Assédios e ameaças: depoimentos de Seu Altamiro

“Chegou uma menina chamada Adelina, trazendo uma ordem de despejo que a juíza de Paraty mandou. ‘Seu Altamiro, dona Jandira Villela, com seus nove filhos, para a rua, sem direito a nada.’ É. Tá vendo como é que é? Então é uma juíza, tá?”

“A gente recebeu muita pressão, policial quebrando a minha canoa na praia, pago por eles, tá? O policial veio de lá com outro homem, com outro policial, com certeza. E um cachorrão enorme chegou na porta do meu rancho, que foi pegar minha canoa e quebrou a minha canoa, tá? Eu disse lá embaixo, agradeci a ele. Muito obrigado. Pro trabalho do senhor fazer isso com a minha canoa, com a minha ferramenta de trabalho. Vai lá, Cacaio, busca a minha galera e traz pra terra. Ele me mediu, ele olhou da minha cabeça à ponta dos pés. Ele podia me dar um tiro em mim, porque ele tava armado. Aí ele baixou a cabeça, também foi pra lá, não falou nada, meus amigos vieram.”

“Eu fui falar com o Gibrail foi na hora do búfalo, que destruiu a minha planta toda e de todo mundo. Foi isso que acabou de expulsar mais os moradores da terra. E muitos moradores chegou e disseram assim, rapaz, nós vamos morrer de fome, esses boi acabou tudo com a nossa planta. Ficava tudo dentro daquela lagoa, que estava uma água, ali. Ele tinha destruído com cana, banana, ele lascava o pé da banana no meio, comia o broto lá por dentro, entendeu? Acabou com a cana, arrancou a mandioca, tudo. Aqui a dona era roça do Titinho, ficou toda a mandioca aqui arrancada, arrebentada, tudo.

E eu fui na praia falar com ele, ele estava chegando. Aí minha esposa gritou comigo, Altamiro o que tu vai fazer lá? Eu disse, eu vou lá, vou falar com ele. O meu filho era tudo escadinha, tudo miudinho. Entendeu? E aí eu fui lá falar com ele. Ele me recebeu… “O que é que você quer, Altamiro? O que é que você quer?” Eu disse, olha, é o seguinte, seus boi, 16 cabeças de boi entrou no meu quintal, comeu a minha planta, tudo. O que é que o senhor vai fazer comigo? Ele falou assim, olha, pega os seus nove filhos e vai pra rua, sem direito a nada. Eu disse, tá bom, muito obrigado.

Destruiu tudo que era meu. Mas, graças a Deus. Fazer aquela rodinha na panela de peixe assim, né? Com uma bananinha, um peixe assado ao modo que eu falei pra você, na brasa, com uma sopa d’águazinha com farinha que aí disseram assim mesmo, algum pão de mandioca que ficou. E ali tornei fazer as roças novamente e ele também retirou os bois dele. Muitos morreram. Tem um mato aqui que se chama cicuta. Ele não tinha mato nenhum pra comer. O bicho chegou lá, comeu esse bicho aí, só morria em beira d’água. Aí queria prejudicar os próprios moradores, dizia que estavam matando os bichos. Trouxe médico, sabia? Aí disse que tá morrendo desse mato aqui que ele tá comendo, chamado cicuta. Aí ele tirou o restante do boi pra fazer lá no Mamanguá. Agora, que a turma que tava aí morando, esses moradores, era pra fazer igualmente eu.”

“Então, essa advogada que eu arrumei não foi pra mim sozinho. Essa advogada foi pra todos os moradores. Só eles não acreditaram, entendeu? Eu chegava, fazia várias reuniões ali na praia, na barraca da dona Dica, na nossa barraca. Chamava os moradores. Muitos vinham, muitos não vinham. Muitos, se eles chegavam lá, apontavam o dedo lá no nariz do pai, ó, hein? Abre os olhos, Altamiro, que ele vai tomar suas posses.”

“Ó, quando eles tiraram quase de uma vez um barco amarelo que eles tinham, antes de sair, eu tenho que contar mesmo. Não tem jeito não, né, pai? É isso aí. Eles compraram um barco no Mamanguá, um barco amarelo, e esse barco tirou o pessoal tudo.”

Em meio a tal hostil, complexa e injusta luta, Seu Altamiro mantém o sorriso hospitaleiro e a mirada ampla. “Então, assim, minha filha, eu não tenho inimigo. Ele tá lutando, ele tá brigando, eu tô orando pra ele ser salvo. Então tá aí. Se bater na minha porta, o que tiver, ele vai comer. O que ele tiver, ele vai beber. Vou oferecer pra ele com o maior prazer. É isso. Eu não tenho inimigo. Aí… Temos que ir à luta, né?”

Fim de tarde na Praia Grande da Cajaíba

O fim do mundo, de novo

A experiência da comunidade é desafiada pelos conflitos sociais e, ainda, pelas mudanças ecológicas decorrentes desses conflitos e culminantes na crise climática. Seu Altamiro conta como há alguns anos já não há mais peixes nem camarões grandes devido aos navios pesqueiros. Comentou sobre uma cachoeira local que nunca a havia visto tão vazia. “Eu fiquei sem coragem de olhar pra cachoeira”. Como agravante, a ignorância política mira legislações preservacionistas neles, e não nos grandes. Os navios pesqueiros transitam livremente. Os caiçaras, por outro lado, já chegaram a ser proibidos de tirar madeira para fazer canoas, para supostos fins de preservação. Após uma briga judicial, o povo caiçara recuperou o direito legal de viver com a terra e o mar como sempre fizeram. Essa artificial cisão entre humanos e natureza como pressuposto do preservacionismo demonstra a grave falta de compreensão, reconhecimento e valorização dos modos de vida tradicionais — e ecologicamente equilibradas — de tais comunidades.

Casa de farinha

O problema da crescente erradicação de peixes e camarões afeta, também, os familiares que foram enxotados para a cidade. “Flavinha, Leleco, Datinho, Davinha, Dani, todos são meus sobrinhos. Está difícil, minha filha. Não tem camarão, não tem pesca (…). Tem o barco para matar camarão. Eles saem pra matar camarão, não tem. Eu agora estou sabendo lá que eles estão correndo atrás para ver se faz um biquinho ali, um biquinho aqui. Porque não tá dando mais pra sobreviver na cidade, tudo tá caro, né, minha filha?”

A roça de Seu Altamiro é digna de sua mais afetiva dedicação, consciente de que, na cidade, a comida dos mercados vai acabar, enquanto a terra seguirá dando vida. “Cidade tem coisa boa, mas não serve pra nós. Que lá, se quiser comer uma laranja, precisa ter o dinheiro. Aqui não, nós sabemos a nossa leitura, sabemos plantar, sabemos colher, sabemos fazer a nossa rede, sabemos matar o nosso peixe. Gente, somos ricos.” Seu Altamiro se sente seguro — mais, rico — com a abundante e diversa alimentação que obtém da roça, da mata e do mar. Diz que palmito, por exemplo, ele não tira para vender, mas farta-se dele. Assim é também nos territórios vizinhos e aliados. Ele conta:

“Eu comi uma jaca no quilombo — é comer um frango, né? Virge, como é que eles preparam, né? Gente, pelo amor de Deus, nós aqui, morre de fome, se o cara quiser, porque temos de tudo. A mata lá, você vai lá, tem um… a gente chama coco preto. Ele tá cada um cachão assim, ó. Quando você quebra ele, ele tá… nós trata bucho de bague. Ele tá molinho pra você comer, que delícia. Minha esposa se acaba tudo. Quando eu vou pra mata lá — ‘traz um cacho de coco pra mim, e coco!’”

Para concluir, vale destacar que, como o prova a história de mais esse território, a questão ambiental é fundiária. Uma comunidade que vive com a terra, defende a terra. Vive com o mar e defende o mar. Quem vem de fora para extrair a serviço de interesses econômicos externos é predador para todos os efeitos. E os desafios dessas comunidades, líderes da luta por terra e pela terra, repetem-se através de incontáveis comunidades irmãs: a resistência pela permanência no território, os assédios do Estado e do capital, dificuldades com a juventude e as novas gerações, o desafio de garantir a continuidade dos saberes dos mais velhos e mais — sempre nadando contra a corrente do poder. “Nós tamo tudo no mesmo barco;” observa seu Altamiro, “se nós não navegar o barco, não vamos a lugar nenhum”.

O sorriso de Seu Altamiro diante da beleza de seu território

Para saber mais:

· Resumo da história da Praia Grande da Cajaíba: https://raizesefrutos.wordpress.com/2010/05/13/a-praia-que-era-grande/

· Notas sobre a história da Praia Grande da Cajaíba e legislações aplicáveis: https://estudofino.wordpress.com/2017/07/14/praia-grande-do-pouso-da-cajaiba/

· Tese de doutorado sobre conflito fundiário em paraty (Breuillac, 2022): https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/20307/1/EFVBreuillac-min.pdf

· Mapa êmico: https://midiatatica.desarquivo.org/wp-content/uploads/sites/6/2021/04/monografiafinal.pdf

· Museu Caiçara (online): https://www.museucaicara.com.br/acad%C3%AAmicas

· Projeto Povos:
https://drive.google.com/file/d/1NA4S4s8R-_JOgtLWjFyQsYrSXuwKe-gp/view

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Referências bibliográficas:

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__________. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, n. 43, 2000.

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ALMEIDA, M.; CUNHA, M. C. da. Populações tradicionais e conservação ambiental. In: CUNHA, M. C. da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

BRITO, M. C. W. de. Unidades de conservação: intenções e resultados. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.

CAVALIERI, L. A comunidade caiçara no processo da reclassificação da reserva ecológica da Juatinga. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

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GARROTE, V. Os quintais caiçaras, suas características socioambientais e perspectivas para a comunidade do Saco do Mamanguá. Dissertação (Mestrado em Engenharia Florestal) — Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2004.

LITTLE, P. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Série Antropologia. Brasília: UNB, 2002.

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MMA. Plano de manejo da APA do Cairuçu. Brasil, [sem data].

VIANNA, L. P. De invisíveis a protagonistas: populações tradicionais e unidades de conservação. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2008.

[1] A população da Cajaíba não possui o título da terra, a propriedade é baseada no direito costumeiro e no trabalho. Em sua maioria posseiros, tornaram-se alvo de especuladores e grileiros de terras. Após a morte de um sesmeiro que possuía terras na área da Península da Juatinga (incluindo a Praia Grande da Cajaíba), elas passaram para a posse da União. No ano de 1953 foram leiloadas pela Fazenda Pública Estadual à Theóphilo Rameck, o qual vendeu suas terras a Gibrail Tannus no ano de 1955. No memorial descritivo contido no Registro Imobiliário foram feitas alterações com rasuras em tinta vermelha no Livro de Registro de Imóveis e, com isso, mais áreas foram anexadas à propriedade (Júnior, 2005).

[i] Julio Cesar Gibrail Tannus é graduado em Engenharia Elétrica e de Produção pela Faculdade de Engenharia Industrial (FEI/SP), sua formação profissional inicial se deu na Light Serviços de Eletricidade, onde ingressou, em 1966, como engenheiro, desenvolvendo-se durante nove anos, até a posição de chefe da divisão de planejamento e controle orçamentário (Rio de Janeiro e São Paulo). Em seguida atuou em empresas dos segmentos de sistemas de transportes, participando de estudos de viabilidade e análise de projetos. A partir de 1976, iniciou atividades na área de marketing, atuando na administração de processos em Pesquisa de Mercado e Comunicação. Desenvolveu a atividade como professor de Ensino Superior, ministrando aulas no curso de Engenharia Industrial e no curso de Administração Automotiva da FEI/IECAT. Assumiu a presidência da Sociedade Brasileira de Pesquisa de Mercado por duas vezes e também a presidência de seu Conselho Deliberativo. Durante sua trajetória profissional teve exposição internacional em conferências, seminários, reuniões de negócio e absorção de novas ferramentas de análise e conhecimentos especializados. Co-autor do livro Teoria e Prática da Pesquisa Aplicada, publicado pela Editora Elsevier.

Fonte: https://www.scortecci.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=10990&friurl=_-RAZAAO-E-EMOAAAO--Julio-Cesar-Gibrail-Tannus-_. Acesso em 8 de janeiro, 2025.

[ii] . Em série: “1. Introdução de búfalos que destruíam as roças familiares; 2. Interdição da entrada para a cachoeira com fios de arame; 3. Ameaça armada pelo policial civil Brício Fioreti em diversas ocasiões, sendo uma delas durante um jogo comunitário de futebol no campo que existia na praia, com a presença de crianças e adolescentes de comunidades vizinhas. Após este ep i- sódio, o campo foi desativado. 4. Realização de operação com o apoio do IEF que resultou na queima e desmonte de diversos ranchos de pesca, em agosto de 2005. 5. Apreensão de material de construção dos moradores. 6. Intimidação com armas de fogo e humilhação dos moradores pelos caseiros e se- guranças contratados” (Santos, 2012, pp. 41–42).

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Written by Noa Cykman

Humana, socióloga, amiga das palavras e das utopias

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